SANCTORUM ALTRIX – Papa João Paulo II

SANCTORUM ALTRIX – Papa João Paulo II

CARTA APOSTÓLICA

NO XV CENTENÁRIO DO NASCIMENTO DE SÃO BENTO, PATRONO DA EUROPA, MENSAGEIRO DA PAZ 

Aos dilectos filhos
Vitor Dammertz, Abade Primaz da Ordem de S. Bento;
Tiago Del Rio, Maior da Congregação dos Eremitas Camaldolenses do Monte Corona;
Paulo Anania, Abade-Geral da Congregação Mequitarista de Veneza;
Sigardo Kleiner, Abade-Geral da Ordem Cisterciense;
Ambrósio Southey, Abade-Geral da Ordem dos Cistercienses Reformados (Trapistas):
no XV centenário de S. Bento, Abade.

Dilectos filhos
saúde e Bênção apostólica

Geradora de santos, a Igreja mãe apresenta aos seus filhos, como mestres de vida, aqueles que, por esplêndido exercício de virtudes, seguiram fielmente a Cristo, seu Esposo. Pretende que eles, seguindo-lhes as pegadas, possam chegar à perfeita união com Deus, apesar das variadas distracções do mundo, e possam atingir deste modo o próprio fim. São aqueles homens e aquelas mulheres excelentes que, embora submetidos durante a vida terrena aos especiais condicionalismos do próprio tempo — culturais especialmente — fizeram todavia resplandecer com o modo de viver e a doutrina um aspecto particular do mistério de Cristo, aspecto que, ultrapassando os limites apertados do tempo, ainda hoje conserva a sua força e o seu vigor.

Por isso, celebrando-se agora o XV aniversário do nascimento de S. Bento, apresenta-se a ocasião de escutar de novo a sua mensagem espiritual e social.

I

Em qualquer religião sempre houve quem, “esperando resposta para os enigmas da condição humana” [1], fosse atraído de maneira singular para o Absoluto e para o Eterno. Entre estes, no que diz respeito ao Cristianismo, sobressaem os monges, que já nos séculos III e IV, tinham instituído, nalgumas zonas do Oriente, uma própria forma de vida, tendente a realizar, por inspiração divina e a exemplo de Cristo “orando sobre o monte” [2], ou uma vida solitária e segregada, ou a dar-se ao serviço de Deus na convivência da caridade fraterna.

Do Oriente, por conseguinte, penetrou a disciplina monástica em toda a Igreja e alimentou o salutar propósito de outros que, mantendo as normas da vida religiosa, imitavam o Salvador, “que anunciava às multidões o reino de Deus e trazia os pecadores à conversão” [3].

Quando, devido a este espiritual fermento, a Igreja se tinha já desenvolvido, mas simultaneamente se arruinava a cultura, e o mundo romano envelhecia — pouco antes, de facto, tinha caído o império ocidental —, pelo ano de 480 nascia em Núrsia S. Bento.

“Bendito pela graça e pelo nome, desde o tempo da infância tendo um coração de homem idoso” e “desejando agradar só a Deus” [4], pôs-se à escuta do Senhor, que procurava, o Seu operário [5], e vencendo as hesitações do espírito, nascidas no princípio, percorreu caminhos “duros e ásperos” [6], isto é, enveredou “pelo caminho estreito que conduz à vida” [7].

Levando vida solitária nalguns lugares e purificando-se com a prova da tentação, conseguiu que o seu coração ficasse aberto só para Deus; movido unicamente pelo Seu amor, reuniu outros homens, com quem, como pai, entrasse “na escola do serviço do Senhor” [8]. E assim, unindo ao sentimento do próprio dever a prática esclarecida “dos instrumentos das boas obras” [9], ele e os seus companheiros constituíram uma cidadezinha cristã, “onde finalmente — como disse Paulo VI, Predecessor nosso de recente memória —  reinassem o amor, a obediência, a inocência, o ânimo desapegado das coisas do mundo e a arte de usar delas rectamente, o primado do espírito, a paz — numa palavra, o Evangelho” [10].

Praticando assim o que havia de bom na tradição eclesial do Oriente e do Ocidente, o Santo de Núrsia chegou a considerar globalmente o homem, cuja dignidade, como pessoa, inculcou como sem igual.

Quando morreu no ano de 547, já estavam lançados sólidos fundamentos para a disciplina monástica, que, particularmente depois dos sinodos da idade carolingia, se tornou o monaquismo ocidental. Este, por meio das abadias e outras casas beneditinas, difundidas por toda a parte, constituiu a união primitiva e originária da nova Europa: dizemos da Europa, a cujas “gentes, que vivem desde o Mar Mediterrâneo até à Escandinávia, da Irlanda até aos territórios abertos da Polónia, os filhos deste Santo — com a cruz, com o livro e com o arado — levaram a civilização cristã” [11].

II

Temos hoje o propósito de chamar a vossa atenção para três coisas fundamentais na vida beneditina: a oração, o trabalho e o exercício paterno da autoridade. Estas três coisas apraz-Nos abraçá-las numa mais ampla perspectiva teológica e humanista — como derivantes da vida e do magistério de Bento, sobretudo da sua Regra —, a fim de poderem considerar-se mais profundamente.

Esta lei de vida é sem dúvida, segundo as palavras deste Santo, “uma Regra mínima de iniciação”, mas mais propriamente um compêndio, coerente e abundante, do Evangelho posto em prática com um género de vida não comum. De facto, observando o homem e a sua sorte associada à Redenção, ele propõe alguns capítulos de doutrina, mas especialmente uma forma de vida. E embora tal método seja reservado aos monges — e, para mais, aos monges do século VI —, todavia nele estão contidos e dele tomam brilho os preceitos que dizem também respeito ao nosso tempo e são úteis a todos quantos renasceram no baptismo e são adultos na fé; a todos quantos pela inércia da desobediência se afastaram de Deus e agora pela obediência da fé, nem sempre com facilidade, se esforçam por voltar a Ele [12].

A vida beneditina na Igreja aparece, a maior parte das vezes, como busca plena de Deus, da qual é necessário que de algum modo se distinga o decurso da vida de todo o cristão que tende às “alturas da doutrina e das virtudes” [13], até chegar à pátria celeste. Caminho que S. Bento com ânimo solícito e comovido percorre e respeita, mostrando os não poucos impedimentos que o tornam difícil, e os perigos que parecem fechá-lo e tornar vãos todos os esforços; por conseguinte, o homem é escravo das paixões desenfreadas que o levam, ora a inchar-se com vã presunção e soberba, ora a atemorizar-se com o pavor que enfraquece as forças [14].

Mas este “caminho de vida” [15] pode ser percorrido unicamente sob determinadas condições: na medida em que é amado Cristo sem restrição e é conservada a genuína humildade. Então o cristão, consciente da sua enfermidade e indigência, entra, pela graça de Deus, na vida espiritual; liberta-se das coisas perigosas que o entorpecem, contempla mais claramente a sua natureza autêntica como pessoa e, nas profundidades mais íntimas da alma, descobre Deus presente. Portanto o amor e a humildade unem-se, movendo o homem a que desça, para depois subir mais alto. A nossa vida, de facto, é uma escada, “que pelo coração humilhado o Senhor eleve ao céu” [16].

O modo exterior da vida monástica poderia contudo criar a opinião de a vida beneditina garantir só a utilidade própria do monge que a professa e, por outro lado, de ela facilmente gerar a negligência quanta aos outros; portanto de alhear o espírito da convivência social e dos verdadeiros cuidados a respeito do próximo. Infelizmente a vida, que é vivida dentro das paredes do mosteiro na solidão e no silêncio, é considerada desse modo até por alguns que pertencem à comunidade eclesial.

Pelo contrário, quando o monge recolhe o seu espírito, ou, como disse S. Gregório referindo-se a S. Bento de Núrsia, habita consigo mesmo, e se considera a si diligentemente através da purificação da ascese penitencial, precisamente por isto acontece libertar-se da vontade própria. Mas esta intenção da mente, que uma pessoa dirige para si mesma, é só condição, de todo necessária, para o seu ânimo, com desejo mais verdadeiro, de se abrir para Deus e para os irmãos. Por esta força impulsiva da convivência beneditina acontece que os monges vivam em comunidade e esta se torne sede de hospitalidade.

São Bento percorre este caminho principal, pelo qual dentro dos limites da família monástica se vai para Deus. Mas a vida comum do mosteiro — segundo o seu parecer, lugar singular, em que se dilatam os corações dos habitantes obedientes mas entre si independentes — é movida e incitada por intenso amor do próximo, por meio do qual cada um é levado, esquecendo a própria comodidade, a servir a utilidade do irmão.

O homem, quando se esforça diariamente por que a exigência, que nunca deve ser abandonada, do espírito recolhido e modesto, como também a participação na vida, também esta não sujeita a abandono, sejam em pé de igualdade equilibradas, revigora-se por aquela faculdade em virtude da qual ele é uma pessoa autêntica, tendo relações com os outros, de maneira especial com Deus, que é totalmente diverso.

Deste modo, porém, de avaliar os homens e as coisas sociais, que é próprio de S. Bento e de toda a tradição que dele provém, as relações não são circunscritas só à comunidade monástica. A clausura separa verdadeiramente o homem e o século, e deve constituir, contra toda a dissipação fátua, uma espécie de barreira que não é lícito ultrapassar; mas esta não divide e não separa do amor. Pelo contrário, este limite quase abre o espaço, necessário para uma mais ampla liberdade, onde o monge — e em certo modo todo o homem, preocupado com a sua “pequena clausura” — viva e cresça no amor; onde abra o seu coração aos irmãos, que desejam participar de todas aquelas coisas que ele experimenta na sua união com Deus, e onde felizmente acontece que, como disse sagazmente Paulo VI, a sua sede “seja sempre mais frequentada como casa de paz e de oração, onde os homens se encontrem a si mesmos e Deus dentro deles” [17]; por outras palavras, para que lá se constitua “a escola do serviço do Senhor”, isto é “a escola… de virtude e da contemplação que nasce abundantemente das claras e sólidas explicações do Evangelho, da doutrina tradicional e do magistério da Igreja” [18]; ele, quer dizer o monge, estabelece uma relação com todos e cada um, ultrapassando com a oração todo o confim de espaço e termo de tempo. Por todas estas condições, o monge de S. Bento torna-se irmão universal, evangelizador, mensageiro de paz e de amor.

III

No tempo de S. Bento a comunidade eclesial e a sociedade humana mostravam muitas semelhanças com as condições da vida humana que existem hoje. As perturbações do Estado e a incerteza do futuro, estando iminente a guerra ou tendo já rebentado, originavam males que aterravam os ânimos. Por isto aconteceu que a vida foi julgada desprovida de todo o significado certo e definido.

Dentro da Igreja acalmara-se finalmente a prolongada luta, com que se investigavam apaixonadamente os mistérios de Deus, sobretudo a imperscrutável verdade da divindade do Filho e da Sua autêntica humanidade. Todas estas matérias ressoavam como eco nas palavras, dignas de eterna memória, de Leão Magno, sucessor de S. Pedro e bispo de Roma.

S. Bento, reconhecendo este estado de coisas, pediu a Deus e à tradição viva da Igreja a luz e o caminho que devia seguir. A determinação por ele tomada pode considerar-se como paradigma do dever cristão nas várias alternativas desta peregrinação terrena, embora não existisse um método de vida certo e definido.

Jesus Cristo é o centro vital, absolutamente necessário, a que todas as coisas devem referir-se, para que a estas possa ser dado sentido e elas possam harmonizar-se solidamente. Apelando para a afirmação de S. Cipriano, Bispo de Cartago, Bento afirma com energia e gravidade que absolutamente “nada pode ser anteposto ao amor de Cristo” [19].

Nos homens, porém, e nas coisas, há força e importância na medida em que tudo está ligado com Cristo; portanto a esta luz tudo deve ser considerado e estimado. Todos os que estão no mosteiro — do superior (que é o pai, o abade) até ao hóspede desconhecido e pobre, do doente ao último dos irmãos — significam a presença viva de Cristo. Também as coisas são sinais do amor de Deus para com as criaturas, ou do amor com que o homem é levado para Deus, e até mesmo um instrumento e uma ferramenta para se fazer um trabalho “sejam considerados como vasos sagrados do altar” [20].

S. Bento não propõe alguma vazia consideração teológica, mas partindo da verdade das coisas, segundo o uso, inculca nas almas um modo de pensar e de agir, segundo o qual a teologia é transferida para a prática da vida. Não tem tanto a peito falar das verdades sobre Cristo quanto, partindo do mistério de Cristo e do “Cristocentrismo” dele derivado, viver uma vida bem autêntica.

É necessário que o primeiro lugar, que é atribuído ao modo sobrenatural de sentir as vicissitudes quotidianas, concorde com a verdade da Encarnação: porque, ao homem fiel a Deus, não é lícito esquecer-se do que é humano, deve ser fiel também ao homem. Por isso, o dever para cumprir, de modo vertical como dizem, que se manifesta sobretudo na vida de oração, está devidamente equilibrado se se harmoniza devidamente com o que requer o modo “horizontal”, de que a parte mais importante é o trabalho.

Na convivência monástica, portanto, sob a guia daquele que “se crê fazer as vezes de Cristo” [21], S. Bento mostra o caminho que há-de percorrer-se, o qual se distingue por grande uniformidade. Este caminho, que está entre a solidão e a convivência, entre a oração e o trabalho, é necessário que também o leigo do nosso tempo o percorra — ainda que sejam diversos os pesos para atribuir a estas coisas — a fim de poder realizar perfeitamente a sua vocação.

IV

O amor verdadeiro e absoluto a Cristo manifesta-se de modo significativo na oração; que é por assim dizer o eixo à volta do qual rodam a convivência quotidiana e toda a vida beneditina.

Mas o fundamento da oração, em conformidade com uma sentença de S. Bento, está em que alguém ouça a palavra; porque o Verbo encarnado — aqui, hoje, a cada homem na condição presente que não se repete — fala através das Escrituras e do ministério eclesial; coisa que no mosteiro se realiza também por meio das palavras do pai e dos irmãos da comunidade.

Em tal obediência de fé, a palavra de Deus é recebida com humildade e alegria, derivando esta de se reconhecer uma perene novidade, que o tempo não diminui, pelo contrário torna mais viva e de dia para dia mais atraente. E esta palavra torna-se fonte inexausta de oração, porque “o próprio Deus fala à alma, sugerindo-lhe as respostas, que o Seu coração espera. Esta oração é dividida pelos vários períodos do dia e, como veia de água subterrânea, alimenta o trabalho quotidiano” [22].

E pela meditação tranquila e saborosa — que é verdadeira ruminação espiritual — a palavra de Deus excita nas almas dadas à oração aqueles agudos raios de luz, que iluminam o decurso do dia inteiro. Na verdade, esta é a “oração do coração”, aquela “breve e pura oração” [23], por meio da qual aos divinos impulsos respondemos, e ao mesmo tempo pedimos ao Senhor que nos conceda o inexaurível dom da sua misericórdia.

Portanto a palavra de Deus, que encerra o profundo mistério da salvação, todos os dias é ouvida amorosamente pela alma e é meditada com solicitude; isto faz-se por certo empenho vital, que se explicita não por ciência humana mas pela sabedoria, que traz em si alguma coisa de divino; isto é, não para que saibamos mais, mas para que, se é lícito assim falar, para que sejamos mais: para falarmos com Deus, para a Ele dirigirmos a Sua mesma palavra, para pensarmos o que Ele pensa, numa palavra, para vivermos a Sua mesma vida.

O fiel, ouvindo a palavra de Deus, é levado a entender o curso das coisas múltiplas e várias como também dos tempos, que o Senhor providente decidiu acontecessem na família humana, de maneira que à alma crente fosse apresentado mais amplo espectáculo da munificência salvífica. Por isso do mesmo modo acontece que as maravilhas de Deus sejam captadas pela fé de olhos abertos e com os ouvidos atentos [24]. A luz deífica da contemplação acende a centelha e quer o silêncio, junto à admiração; e o cântico de exultação e a pronta acção de graças dão àquela oração índole particular, mediante a qual os monges celebram cantando os louvores do Senhor cada dia. Então a oração torna-se quase a voz da criação inteira e toma o lugar do excelso canto da Jerusalém celeste. A palavra de Deus nesta peregrinação terrena faz que toda a vida seja sentida como aberta a Deus que olha, e na oração ao Pai vem a ser dada voz àqueles que agora já não a têm: as alegrias e as ansiedades, os êxitos favoráveis e as esperanças desiludidas, e as expectativas de acontecimento propício ressoam nela de algum modo.

S. Bento é principalmente levado por esta palavra de Deus na sagrada liturgia, não procurando contudo que se torne a comunidade somente uma reunião para celebrar os mistérios divinos com ardor, mas que declare harmoniosamente a comum experiência recebida no Espírito com o canto coral; de facto, tem muito a peito que as disposições íntimas correspondam à palavra de Deus pronunciada e cantada: “a mente esteja de acordo com a palavra” [25]. A Sagrada Escritura, conhecida e apreciada deste modo vital, é lida com gosto, quando ao mesmo tempo há aplicação intensa à oração. Por impulso de amor, a alma recolhe-se muitas vezes diante de Deus; nada é preferido à Obra de Deus [26]; a oração, feita na liturgia, transfere-se para a vida, e a vida mesma torna-se oração. A oração, logo que termina a liturgia, levada como de círculos pequenos a outros maiores, amplifica-se e propaga-se no estado de alma recolhido e silencioso, e por isso acontece que alguém de modo especial ore consigo mesmo e que o hábito da oração penetre as acções e os momentos do dia.

S. Bento, amante da palavra de Deus, lê-a não só na Bíblia sagrada mas também no grande livro que é a natureza. O homem, contemplando a beleza da criatura, comove-se nos recessos mais íntimos do espírito, e é levado a recordar Aquele que é sua fonte e origem; ao mesmo tempo é levado a comportar-se com reverência para com a natureza, a pôr-lhe em evidência a beleza, respeitando-lhe a verdade.

“Onde sopra o silêncio, fala a oração” [27]: na solidão, de facto, a oração aumenta por certa riqueza pessoal; o que deve referir-se não só ao vale inculto do Aniene, onde S. Bento na solidão falava a sós com Deus, mas também à cidade repleta de progressos técnicos mas distractiva para os espíritos, onde o homem da nossa época se vê muitas vezes segregado e entregue a si mesmo. Mas é necessário que a alma se exercite nalgum deserto, a fim de poder levar vida autenticamente espiritual; porque ele previne contra as palavras vazias e torna mais fácil o trato que é necessário ter com Deus, com os homens e com as coisas. No silêncio do deserto, os motivos que se interpõem entre uns e outros, ficam reduzidos àquilo que é principal e primário, acrescentando-se-lhe certa austeridade, enquanto se purifica o coração, enquanto se descobre de novo o hábito da oração quotidiana, que do íntimo do coração se eleva a Deus. Oração que verdadeiramente não é feita com Ele na abundância das palavras mas na pureza do coração inflamado e na compunção das lágrimas [28].

V

A face do homem é muitas vezes regada de lágrimas que, não provindo sempre da sincera compunção ou da alegria excessiva, brotam e chegam a levar a alma a orar; muitas vezes, de facto, as lágrimas são derramadas por causa da dor e da perturbação daqueles cuja dignidade humana é desprezada, pois não conseguem obter aquilo que justamente ambicionam nem levar a termo uma obra adequada às próprias necessidades e à própria inteligência.

Também S. Bento vivia numa sociedade civil deformada por injustiças, valendo pouco muitas vezes a pessoa e sendo considerada como coisa: segundo essa organização social, estruturada em várias obras, os miseráveis e os segregados eram tidos no número dos escravos; os pobres tornavam-se mais necessitados; e os ricos cada vez mais ricos. Todavia, aquele homem insigne desejou a comunidade monástica estruturada segundo as prescrições do Evangelho. Restitui o homem à sua integridade, qualquer que fosse a ordem social de que viesse; provê às necessidades particulares segundo as normas da justiça distributiva; marca a cada um ofícios que se completam e entre si se dispõem com nexo apropriado; toma cuidado da enfermidade dos outros, não deixando porém Lugar às tentações da preguiça: concede, pelo contrário, facilidades à diligente acção dos mais dotados, para que não se sintam restringidos, mas antes estimulados a exercitarem as suas melhores forças. Assim tira o pretexto mesmo à leve e às vezes justa murmuração, estabelecendo as condições da verdadeira paz.

O homem para S. Bento não é máquina sem nome, da qual uma pessoa se pode servir com a intenção de tirar dela o maior proveito, mas recusando qualquer aprovação moral ao operário e negando-lhe a justa paga. Deve notar-se que nesse tempo o trabalho costumava ser feito por escravos, que não eram tidos como homens. Mas S. Bento considera o trabalho, quaisquer que sejam os motivos que levem a fazê-lo, como parte essencial da vida, e obriga a ele cada monge para que ao mesmo se aplique por dever de consciência. Este trabalho deve ser tomado como “causa de obediência e de expiação” [29], embora com o esforço verdadeiramente eficaz se juntem a dor e o suor. Esta fadiga alcança porém força redentora purificando o homem do pecado e, além disso, nobilitando quer as coisas que são tratadas com diligência, quer o próprio meio dentro do qual se exerce a actividade.

S. Bento, passando a vida terrena, na qual o trabalho e a oração se harmonizam convenientemente, e inserindo deste modo com felicidade o trabalho na mesma vida que deve ser considerada à luz sobrenatural, ajuda o homem a reconhecer-se cooperador de Deus e a tal se tornar, ao mesmo tempo que a sua pessoa, apoiando-se em certa actividade criadora, é promovida na totalidade. Até a acção humana se torna contemplativa, e a contemplação adquire certo valor dinâmico, tendo a sua importância para a mesma obra e a esta esclarecendo as finalidades propostas.

Não se faz isto, só para evitar a ociosidade, que embota os espíritos, mas também e especialmente para que o homem idóneo, como pessoa recordada dos seus deveres e diligente, se desenvolva com as várias actividades, a fim de que no íntimo da sua alma se venham a descobrir forças, talvez ainda ocultas, que possam dar frutos para o bem comum, “para que em tudo seja Deus glorificado” [30].

O trabalho, portanto, longe de se ver aligeirado com a áspera luta, recebe novo impulso interior. Na verdade, o monge, não apesar de fazer um trabalho, mas precisamente porque o faz, une-se a Deus, porque, “enquanto trabalha com as mãos ou com a mente, ergue-se continuamente para Cristo” [31].

Assim acontece que o trabalho embora vil e insignificante, enriquecido todavia com certa dignidade — seja empreendido e se torne parte vital “daquele sumo desejo, mediante o qual só Deus é buscado, na solidão e no silêncio, para à vida mesma ser atribuída força de oração perene, de sacrifício de louvor, ao mesmo tempo celebrado e consumado, sob a inspiração de uma alegre e fraterna caridade” [32].

A Europa fez-se cristã, porque especialmente os filhos de S. Bento comunicaram aos nossos antepassados uma instrução que abraçava tudo, ensinando-lhes não só as artes e as obras materiais, mas também, especialmente, por terem infundido neles o espírito evangélico, necessário para proteger os tesouros espirituais da pessoa humana. O paganismo, que naquele tempo foi trazido ao Evangelho por numerosos esquadrões de monges missionários, e hoje se propaga cada vez mais no Ocidente, já é causa e efeito daquela perdida maneira de considerar o trabalho e a sua dignidade.

Se Cristo não dá à acção humana alto e perpétuo significado, aquele que trabalha torna-se escravo — precisamente nos nossos tempos do insano esforço que só procura o ganho. Ao contrário, S. Bento afirma a necessidade urgente de manifestar a índole espiritual do trabalho, alargando os limites da operosidade humana, de modo que esta saia daquele intenso exercício das artes técnicas e da busca excessiva da utilidade própria.

VI

Na sociedade, qual existe nos nossos tempos, e aqui e ali tomou o carácter de “sociedade sem pais”, o Santo de Núrsia ajuda a reencontrar aquela primária dimensão — talvez demasiado esquecida pelas autoridades — a que chamamos dimensão paterna.

S. Bento faz entre os seus monges as vezes de Cristo, e estes obedecem-lhe como ao Senhor com sentimentos que o mesmo Salvador tinha para com o Seu Pai. A esta obediência-audição, própria de filhos, que deste modo ajudam a pintar a figura do pai, corresponde a mente decidida, que S. Bento deseja transmitir a todos os monges, considerando as pessoas em geral. Esta atenção permite-lhe tratar mais diligentemente de todas as necessidades da comunidade.

Quem exerce a autoridade, ainda que não omitindo as coisas que dizem respeito à estruturação da vida monástica e às coisas materiais, é necessário que tenha a solicitude da condição espiritual de cada pessoa, porque esta deve ser muito preferida ao que é terreno e transitório.

Na consideração destas coisas, que na vida humana são espirituais e fundamentais, o abade é iluminado pelo colóquio que tem assiduamente com a palavra de Deus. A esta palavra de Deus tanto se conforma o pai, que a sua acção se torna quase um fermento de justiça divina a actuar na mente dos filhos.

Nas deliberações que hajam de tomar-se dentro da comunidade, S. Bento concede plena autoridade ao abade; a sua deliberação não pode ser impugnada. Isto não vem todavia de a autoridade ser julgada dominação imperiosa: o pai toma conselho com todos os irmãos e com alguns em particular, sem qualquer preconceito, estando ele persuadido que também nas coisas de grande importância “muitas vezes o Senhor revela ao mais novo o que é melhor” [33].

No colóquio fraterno, o abade ouve as propostas daqueles que interroga sobre a atribuição de um ofício determinado, mas, para bem do particular ou da comunidade, há-de ser forte no mandar coisas que às vezes podem parecer impossíveis; deverá ter muito a peito a promoção dos particulares, a fim de que progridam e toda a comunidade aumente e cresça.

O fim primário, em vista no pai da comunidade, deverá ser ajudar e governar as almas atentamente, de maneira que se veja com clareza que o primado é atribuído ao amor. O verdadeiro pai “exalte a misericórdia acima do juízo” [34], e procure mais ser amado que temido, sabendo convir mais ser útil do que mandar [35].

Recordando-se que deverá prestar contas de todos os que lhe estão entregues, o abade ama os irmãos; com eles e por eles desempenhando o cargo de bom pastor, faz o que julga ser mais útil para o bem de todos, mais convir e ser mais salutar. “O abade deve ter, pois, grande solicitude e correr com todo o discernimento e empenho, para não deixar perder nenhuma das ovelhas a si confiadas… Imite ainda o piedoso exemplo do bom Pastor que, deixando 99 ovelhas no monte, vai procurar uma que se tresmalhara, tomando dela tanta compaixão que se digna recebê-la sobre os sagrados ombros e assim reconduzi-la ao rebanho” [36]. O pai da comunidade, que há-de governar as almas, saiba que neste ministério pastoral deve fomentar os bons costumes de muitos [37]; conforme-se e adapte-se a cada um, para dar ajuda certa e concreta de que precisa; seja paciente com todos, não tolerando porém as faltas dos transgressores: odeie a prevaricação, mas, isento de ira e de ódio, ame os próprios filhos sóbria e magnanimamente.

Esta maneira de proceder mostra aos outros, com a autoridade em governar, também a outra face do cargo de superior: referimo-nos à discrição, que é justa medida e equilibrio em tomar as deliberações e decisões, para que não se murmure inutilmente. Assim, os particulares, obedecendo modestamente, não só são ajudados a ultrapassar os limites apertados daquilo que procuram como útil para si naquele momento, mas alargam-se a uma mais alta vista da salvação e da vida social, cooperando por dever de consciência e atingindo aquela liberdade interior, que é necessária, para cada um poder chegar à maturidade sua pessoal.

Estas coisas agora ditas do abade, que desempenha o cargo como sábio dispensador da casa de Deus [38], são o fundamento da paz completa. Paz que está em os irmãos se aceitarem benignamente entre si e se amarem muito uns aos outros, embora haja defeitos inevitáveis e seja completamente diverso o modo como se manifesta a pessoa de cada um.

Esta é a paz que deriva de cada um, humildemente e por dever de consciência, se obrigar com o laço de uma tal sociedade humana, em que a lei do Espírito domina a lei da matéria, onde se encontra instalada uma ordem justa, e onde todas as coisas estão dispostas convenientemente para a realização do Reino de Deus.

S. Bento veio este ano de algum modo visitar-nos de novo, mostrando os modos de conduzir a vida humana, que não fazem senão recordar de perto a doutrina do Evangelho. Isto não nos deve deixar sem curiosidade e descuidados. Especialmente os seus filhos, fiéis aos exemplos e às determinações do pai, são chamados a testemunhar tão excelsa e ao mesmo tempo tão certa e determinada forma de vida. Este testemunho moverá também os simples e os duros de coração, a cujo peito já não descem as palavras. Mas a renovação consequente fará que o mundo revista novo aspecto, mais espiritual, mais sincero e mais humano. Todavia, quem está em posse da autoridade, em qualquer sociedade e grau, é preciso que favoreça mais e mais, e declare o dom da paternidade, que é a única a conseguir congregar os homens com o vínculo fraterno. Porque estes edificarão na paz um mundo melhor e constituirão uma sociedade em que, orando e trabalhando, o homem se torne cooperador e interlocutor do Deus único.

É agradável também recordar, nesta ocasião, que S. Bento foi declarado por Paulo VI, Nosso Predecessor de feliz memória, Patrono da Europa, a qual nasceu, depois da queda do império romano, daquele grande esforço em que participaram em notabilíssima parte ele e os monges, mantendo as instituições de vida. Esta silenciosa, constante e esclarecida obra desses monges fez que o património da cultura antiga se conservasse e fosse transmitido aos povos europeus e a todo o género humano. Assim “o espírito beneditino”, como solicitamente dissemos no 1° de Janeiro deste ano, “é totalmente contrário ao espírito de destruição” [39]; e este “pai da Europa” [40] exorta todos os interessados a que promovam activamente os bens que de facto alimentam e nobilitam os espíritos, e ao mesmo tempo a que afastem com todas as forças o que é destruição e subversão destes mesmos bens.

S. Bento como “mensageiro de paz” [41] dirige-se particularmente aos povos da Europa, empenhados salutarmente em conseguir a própria unidade. A convivência pacífica, que deve procurar-se com toda a energia, há-de fundar-se particularmente na justiça, na libertada verdadeira, na compreensão mútua, no auxílio fraterno — coisas estas que são totalmente conformes à disciplina evangélica.

Proteja, pois, e favoreça o Santo os povos deste continente e todos os homens; e com a sua oração afaste as gravíssimas calamidades, que podem trazer armas perigosíssimas e sumamente mortíferas.

Estas ideias agitam o Nosso espírito, ao mesmo tempo que nos dirigimos, com o pensamento e a oração, a este excelso homem, romano e europeu, glória da Igreja.

A vós, por fim, dilectos filhos, e às famílias monásticas que se encontram, a vários títulos, sob a vossa jurisdição, com a melhor das vontades concedemos a Bênção Apostólica, como testemunho da Nossa paternal benevolência.

Dada em Roma, junto de S. Pedro, no dia 11 do mês de Julho, na festa de S. Bento abade, no ano de 1980, segundo do Nosso Pontificado.

Papa João Paulo II


Notas

[1] Conc. Ec. Vat. II, Decl. Nostra aetate sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs, 1.

[2] Conc. Ec. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium sobre a Igreja, 46.

[3] Ibid.

[4] S. Gregório Magno, Diálogos, liv. II, Prólog.: PL 66, 126.

[5] Cf. Regra de S. BentoPrólog., 1, 14.

[6] Regra de S. Bento, 58, 8.

[7] Cf. Mt 7, 14.

[8] Regra de S. Bento, Prólog., 45.

[9] Cf. Regra de S. Bento, 4.

[10] Cf. Alocução de 24.10.1964 no Mosteiro de Cassino: AAS 56 (1964), p. 987.

[11] Cf. Carta Apost. de Paulo VI Pacis nuntiusAAS 56 (1964), p. 965.

[12] Cf. Regra de S. Bento, Prólog., 2

[13] Regra de S. Bento, 73, 9; cf. Conc. Ec. Vat. II, Const. dogm.  Lumen gentium sobre a Igreja, 9; Decr. Unitatis redintegratio sobre o ecumenismo, 2.

[14] Cf. Regra de S. BentoPrólog., 48.

[15] Cf. Regra de S. BentoPrólog., 20.

[16] Regra de S. Bento, 7, 8.

[17] Carta de Paulo VI a João Carmelo Card. Heenan, Arcebispo de Westminster: AAS 67 (1975), p. 474.

[18] Ibid.

[19] Cf. Regra de S. Bento, 4, 21; 72, 11.

[20] Cf. Regra de S. Bento, 31, 10.

[21] Regra de S. Bento, 63, 13; cf. ibid. 2, 2.

[22] Cf. Aloc. de Paulo VI às Superioras Beneditinas, 29.9.1976: Insegnamenti di Paolo VI, XIV 1976, p. 771.

[23] Cf. Regra de S. Bento, 20, 4.

[24] Cf. Regra de S. BentoPrólog.. 9.

[25] Regra de S. Bento, 19, 7.

[26] Cf. Regra de S. Bento, 4, 55; 4, 56; 43, 3.

[27] Cf. Aloc. de Paulo VI aos monges beneditinos, 8.9.1971: AAS 63 (1971), p. 746.

[28] Cf. Regra de S. Bento, 20, 3; 52, 4.

[29] Carta enc. de Pio XII Fulgens radiaturAAS 39 (1947), p. 154.

[30] 1 Ped 4, 11.

[31] Cf. Carta enc. de Pio XII Fulgens radiaturAAS 39 (1947), p. 147.

[32] Cf. Aloc. de Paulo VI às Superioras Beneditinas, 28.10.1966: AAS 58 (1966), p. 1160.

[33] Cf. Regra de S. Bento, 3, 3.

[34] Regra de S. Bento, 64, 10: cf. Tgo 2, 13.

[35] Cf. Regra de S. Bento, 64, 14; 64, 8.

[36] Regra de S. Bento, 27, 5, 8-9.

[37] Cf. Regra de S. Bento, 2, 31.

[38] Cf. Regra de S. Bento, 64, 5; 72, 3-8.

[39] Cf. AAS 72 (1980), p. 65.

[40] Carta Apost. de Paulo VI Pacis nuntiusAAS 56 (1964), p. 965.

[41] Homilia de Pio XII, 18.9.1947; AAS 39 (1947), p. 455.

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