FULGENS RADIATUR – Papa Pio XII

FULGENS RADIATUR – Papa Pio XII

CARTA ENCÍCLICA

SOBRE O XIV CENTENÁRIO DA MORTE DE SÃO BENTO PATRIARCA DOS MONGES DO OCIDENTE

INTRODUÇÃO

S. BENTO, ASTRO BRILHANTE DA IGREJA E DA CIVILIZAÇÃO

1. Fulgurante de luz, Bento de Núrcia, glória da Itália e de toda a Igreja, resplandece como astro na cerração da noite. Quem pacientemente estudar a sua gloriosa vida e adentrar, à luz da história, o tempestuoso tempo em que viveu, há de sentir, indubitavelmente, a realidade da promessa que o Senhor deixou aos apóstolos e a sociedade que fundara: “Estarei convosco, todos os dias, até a consumação dos tempos” (Mt 27, 20). Sentença e promessa que jamais perderá, por certo, a sua atualidade, porque se envolve no curso dos séculos, que a divina Providência governa e encaminha. Com efeito, quando são mais audazes e agressivos os inimigos da religião e mais temerosos os baixios em que se agita a nau vaticana de Pedro, quando tudo, finalmente, se vai, a desmoronar, e já pereceu de todo a esperança humana, então, precisamente, o amigo que não falta, o divino consolador, dispensador dos tesouros celestiais, Jesus Cristo, aparece para reconstituir as fileiras abaladas, com novos contingentes de atletas, que saiam a defender em campo a república cristã, que a reintegrem como antigamente e que, se puder ser, com o auxílio da graça, a enriqueçam de novas conquistas. 

2. Entre esses atletas, refulge com luz particular “Bento, que duplamente o foi: por graça e de nome”.(1) Por especialíssimo desígnio da Providência, salientava-se nas trevas do século o santo patriarca, à hora precisa em que a situação da Igreja e dos povos atravessava uma crise profunda. O império romano, que atingira o apogeu da glória, estendendo-se, por efeito duma política justa e moderada, aos povos mais diversos, a ponto de afirmar um dos seus escritores “que melhor que império chamarse-lhe-ia padroado da terra”,(2) como tudo que é humano, tinha declinado para o ocaso. Debilitado e corrompido por dentro, esfacelado, por fora, pelas repetidas incursões dos bárbaros que desciam do setentrião, o Ocidente afundava-se na mais completa ruína. Nesta horrível procela, cheia de perigos e destroços, donde surgiria à humanidade a esperança de auxílio, a garantia de salvar da voragem, intactas ao menos, as relíquias do seu patrimônio? Da Igreja católica. Com efeito, todos os empreendimentos e instituições, baseados unicamente no arbítrio dos homens, que reciprocamente se sucedem e engrandecem, no rodar do tempo, vêem, em virtude da própria fragilidade essencial, decair e arruinar-se. A Igreja, porém, possui, derivante do próprio fundador, a propriedade de fruir da vida divina, dum vigor incessante que lhe permite sair da luta com os homens e as coisas sempre vencedora, apta para arrancar, ainda do entulho, uma idade nova e mais feliz e reagregar os povos, com o influxo dos princípios cristãos, numa sociedade rejuvenescida.

3. Por isso, na provável ocorrência do XIV centenário da morte do santo patriarca, em que coroado de méritos e esgotado de trabalhos despendidos em prol de Deus e dos homens, venturosamente passou deste exílio da terra à pátria celeste, houvemos por bem, veneráveis irmãos, salientar, ainda que resumidamente, nesta nossa carta encíclica o momentoso papel que desempenhou na reintegração e reforma das coisas do seu tempo.

I. A FIGURA HISTÓRICA DO PATRIARCA

4. Filho de nobres pais e natural da província de Núrcia,(3) “foi plenificado no seu espírito de todas as virtudes”(4) e defendeu a Igreja, admiravelmente, com sua prudência e virtude. Com efeito, enquanto o mundo se atolava e empobrecia no vício, enquanto a Europa e a Itália pareciam um miserável teatro de guerra e de povos em luta, e até as próprias instituições monásticas, manchadas com o pó da terra não dispunham já daquela porção de vitalidade e energia indispensáveis para resistir com vantagem às insinuações da corrupção, Bento estabeleceu na Igreja, com sua obra e vida, uma corrente perene de juventude, renovando a severidade dos costumes e robustecendo, de leis mais santas e vigorosas, a vida claustral. Mas isto não é tudo. Porque, a peso de trabalho e de esforço seu e seus sequazes, converteu aqueles povos rudes e ferozes, incutindo-lhes hábitos civis e cristãos, convertendo-os para a virtude, o trabalho e para as tranqüilas ocupações da arte e da ciência e unindo-os todos por laços de amor fraterno e caridade.

5. Na flor dos anos ainda, foi enviado a Roma para o estudo das disciplinas liberais.(5) Teve ocasião de ver aí, com imensa tristeza, o pulular das heresias, que arrastavam no vórtice subversivo do erro muitos dos espíritos mais belos; o rebaixamento dos costumes públicos e privados; o atoleiro sensual em que se revolvia a mocidade galante e mundana do seu tempo, de tal modo que se podia dizer, em verdade, da sociedade romana: “Está morrendo e ri. E, por isso, em todas as partes do mundo, às nossas gargalhadas se tem seguido as lágrimas”.(6) Ele, porém, prevenido da graça de Deus, “guardou-se do contágio… e, ao ver que muitos se perdiam no sorvedouro do vício, puxou atrás o pé que já havia colocado na entrada do mundo. …E pondo de lado o estudo das letras, desertando da casa e dos bens paternos, demandou, com o desejo só de agradar a Deus, o hábito da vida perfeita”.(7) Rejeitando, pois, os encantos duma vida mundana e fácil, renunciando, e com prazer, à perspectiva aliciante duma posição categorizada, a que, não sem motivos, podia aspirar, deixou Roma e foi-se meter em lugar silvestre e apertado onde, com mais liberdade, se pudesse entregar à contemplação das coisas celestiais. Chegou, assim, ao sítio que se chama Subiaco e recolhendo-se aí em estreita gruta, começou a fazer vida mais de anjo que de homem.

6. “Escondido com Cristo em Deus” (cf. Cl 3, 3), todo se deu, por espaço de três anos, a se treinar na perfeição evangélica a que, por uma quase espécie de divino instinto, era chamado. Fugir das coisas da terra e apetecer somente, com sagrado ardor, as do Céu; levar as noites e os dias, em suaves colóquios com Deus e em efusão de incendiadíssimas preces pela salvação da sua alma e do próximo; coibir e pôr freio aos instintos sensuais com castigos e macerações da carne, tal foi a convenção solene que a si mesmo se impôs. Desse novo modo de vida colhia tamanha suavidade e prazer, que entrou, então, em maior asco dos deleites que anteriormente experimentara nas venturas do século. Acometido, certo dia, pelo inimigo do gênero humano, com furiosa tentação da carne, como de ânimo nobre e ousado que era, lhe resistiu com toda a energia de sua vontade, e, rojando-se entre puas de cardos e urtigas que ali cresciam, com este sedativo voluntário aplacou o ardor libidinoso. Triunfou, por este processo, de si mesmo e mereceu ser confirmado em graça, em prêmio de tão grande virtude. “Daí por diante, como depois contava a seus discípulos, de tal modo ficaram nele subjugados os apetites, que jamais lhes sentiu o mínimo desforço. Liberto, assim, dos apuros da tentação, podia, em verdade, tornar-se mestre de virtudes”.(8

7. Nesse refúgio solitário e pacífico, em que por longo tempo viveu, se adestrou Bento na prática da virtude e reformulação dos costumes, lançando com solidez os alicerces sobre os quais havia de erguer, mais tarde, o grandioso edifício da perfeição cristã. E, como sabeis perfeitamente, veneráveis irmãos, toda a obra de apostolado religioso e empresa santa há-de gorar, infalivelmente, se não provier de ânimo dotado daqueles predicados cristãos, únicos que possuem o condão de, com o auxílio da graça, encaminhar os empreendimentos humanos à glória de Deus e à salvação das almas. Dessa verdade estava Bento inteiramente certo e convencido. Pelo que, antes de acometer a realização do grandioso plano a que a divina providência o destinava, todo se empenhou em reproduzir primorosamente em si aquele ideal de vida evangélica de que desejava imbuir os outros, e que perfeitamente alcançou, com aturada oração. 

8. E como a fama da sua vida andasse já na boca dos povos vizinhos e se fosse divulgando de dia em dia, não só os monges das redondezas acorriam a alistar-se sob a sua direção, mas os habitantes das redondezas vinham, às turmas, escutá-lo, admirar-lhe as egrégias virtudes e, enfim, presenciar os prodígios que freqüentemente operava mediante a graça do Senhor. Começou, então, aquela vívida luz, que irradiava da sombria gruta de Subiaco, a difundir-se e brilhar por lugares distantes. “De maneira que, já os nobres e religiosos da cidade de Roma afluíam à gruta, a suplicar ao santo que lhes educasse os filhos na escola do Senhor”.(9)

9. Compreendeu, então, Bento perfeitamente que eram chegados os tempos, predefinidos nos planos da Providência, de se lançar na fundação duma nova família religiosa e de a modelar, com esmero, nos moldes da perfeição evangélica. Não lhe faltaram, logo de princípio, felizes esperanças. Muitos foram “os que reuniu em sua volta ao serviço de Deus Onipotente, … a ponto de, com a ajuda de nosso Senhor Jesus Cristo, aí construir doze mosteiros, distribuindo doze monges e um padre espiritual por cada um e retendo consigo os que julgou conveniente preparar ainda melhor”.(10)

10. Contudo, enquanto a iniciativa procedia com venturosos prenúncios de futuro, toda se coroando já de copioso fruto e desabrochando em promessas de mais e melhor, Bento sentiu, com profunda tristeza, cair-lhe sobre a tenra e promissora seara o furacão da procela, que a inveja e cupidez humana tinham levantado. Não se guiava Bento do conselho dos homens, mas de Deus e, receando viesse a redundar em dano dos seus o rancor e ciladas que só contra si maquinavam, agregando aos mosteiros, que já havia fundado, novo contingente de irmãos e provendo-os de superiores, foi demandar com alguns religiosos outras paragens.(11) Confiado em Deus e em seu auxílio certo e oportuno, encaminhou-se, pois, para as bandas do sul e chegou ao local “que se chama Cassino, nas abas dum monte do mesmo nome, onde outrora se erguera um templo consagrado, pelos costumes e ignorância dos gentios, ao oráculo de Apolo. Tinha esse, em roda, um bosque dedicado ao demônio, onde, ainda ao tempo do Santo, acorria a dementada multidão dos infiéis com sacrílegos sacrifícios. Chegando aí o homem de Deus, derribou o ídolo, demoliu o altar, pôs fogo ao bosque, e consagrou o templo à honra de S. Martinho e o altar do deus a s. João Batista. Depois, voltou-se à pregação e levava à verdadeira fé as populações que viviam em roda”.(12)

11. Foi Cassino, como todos sabem, a casa principal do santo patriarca e o mais glorioso teatro de suas virtudes e santidade. Do alto daquele monte, quando a treva da ignorância e do vício, alastrando, ameaçava tudo subverter, ergueu-se um astro novo que iluminou os povos perdidos por dévios caminhos, conduzindo-os ao culto da verdade e da justiça. De modo que se pode dizer, com razão, que foi o sagrado cenóbio de Cassino refúgio seguro das ciências e da virtude e, para tempos tão calamitosos, “sustentáculo da Igreja e baluarte da fé”.(13)

12. Aí elevou Bento a vida monástica àquele ideal de perfeição que, por muito tempo, rezando, meditando, experimentando, tinha procurado alcançar. Parece, com efeito, que estava já predestinado para ele nos planos da Providência o múnus especial de transplantar, do oriente ao ocidente, os hábitos e as regras da vida cenobítica e de os acomodar, com felicidade, à índole e exigências dos povos da Itália e da Europa. À vida puramente ascética, que nos cenóbios do Oriente tanto se havia engrandecido, reuniu um zelo operoso, a vida ativa, que torna possível “comunicar aos outros as coisas contempladas”,(14) colher abundantes frutos espirituais no campo do apostolado e não impede de, simultaneamente, dourar a aspereza dos cômoros com a alegria das searas lourejantes. O que esta vida solitária tinha de mais rude, de inconveniente para a maioria e de perigoso, por vezes, para alguns, foi suavizado e polido pela fraternal convivência das casas beneditinas, onde, na oração e no trabalho, no estudo das letras sagradas e profanas, o venturoso repouso da vida claustral não conhece os danos do ócio e da preguiça; onde o trabalho e ação, longe de fatigarem o espírito ou perderem-no em ocupações inúteis, lhe proporcionam uma paz inalterável e o elevam à contemplação das coisas superiores; onde, finalmente, aos excessivos rigores disciplinares, às macerações e prolongadas penitências se antepõe o amor de Deus e uma caridade obsequiosa e fraternal para com todos. Com efeito, “temperou a sua Regra de modo que os fortes desejassem ir mais além e os fracos a não temessem por severa… Empenhava-se mais em governar os seus com amor, que em dominá-los pelo medo”. (15) E é assim que se conta que, encontrando, uma vez, certo anacoreta metido numa estreita cova e preso com grilhões, não fosse voltar ao mundo e ao pecado, o censurou benignamente, por estas palavras: “Se és, em verdade, servo de Deus, não te prendas em cadeias de ferro mas nas de Cristo”.(16)

13. Deste modo, à legislação particularíssima da vida eremítica, dependente, quase sempre, do arbítrio dos superiores locais e, por conseguinte, vaga e inconstante, sucedeu a Regra beneditina, um monumento luminoso de sabedoria antiga e cristã, onde os direitos e os deveres dos monges, e o seu ministério evangélico, se encontram definidos com inteligência e com amor, e que possuiu e possui ainda o condão de encaminhar muitas almas pelas sendas do bem e da virtude. Na Regra beneditina, com efeito, andam harmonicamente conjugadas a prudência e a simplicidade, a humildade cristã com o exercício das virtudes mais árduas. A severidade e a moderação dão-se de mãos e a própria obediência se enobrece com uma liberdade sã. Uma indulgência sorridente e compreensiva suaviza o rigor dos corretivos, e a recreação elegante e caridosa a austeridade do silêncio. Mantém-se inteiramente de pé a disciplina, mas a obediência infunde nas almas a tranqüilidade e a paz. Numa palavra, a autoridade é exercida e os fracos não carecem de auxílio.(17)

14. Não admira, portanto, que a Regra monástica, “elaborada por S. Bento, singular de elegância e discrição” (18) tenha sido nos nossos dias unanimemente exaltada. Persuadidos de que seremos úteis e agradáveis à numerosa família do santo patriarca, ao clero e ao povo católico achamos por bem, também nós, expor, ainda que resumidamente, as suas características fundamentais.

15. As comunidades monásticas estão organizadas à maneira das famílias cristãs. Têm à frente um abade, o chefe de família, o pai, por assim dizer, de cuja paternal solicitude inteiramente depende a direção total do mosteiro. “Julgamos conveniente – diz Bento – para conservação da caridade da luz e da paz, que todos os negócios relativos à direção do mosteiro estejam dependentes do poder do abade”.(19) De modo que todos e cada um em particular têm o dever, em consciência, de se sujeitarem religiosamente à sua direção(20) e de reverência na pessoa dele à autoridade divina. O abade, porém, considere atentamente que há de prestar ao Juiz supremo (21) conta rigorosa do rebanho que recebeu para dirigir e animar no progresso da virtude, de tal sorte se conduza nesta importantíssima tarefa que, no final, quando, na presença temerosa de Deus, se proceder a juízo, venha a ser merecidamente coroado.(22) Além disso, todas as vezes que surgir no mosteiro negócio grave a tratar, o abade, antes de qualquer decisão, convocará a conselho os irmãos, que livremente manifestem a sua opinião.(23)

16. Surgiu aqui, no princípio, uma dificuldade grave e intricada, na questão relativa a escolha dos candidatos. Vinham bater às portas do mosteiro indivíduos de todas as categorias sociais, na mais completa promiscuidade de nacionalidade, raça e classe: romanos e bárbaros, livres e servos, vencidos e vencedores, aristocratas de alta linhagem patrícia e humildes filhos da plebe. Bento resolve o problema, com serenidade de espírito, aplicando-lhe o princípio da caridade fraterna, “porque, quer gire nas nossas veias o sangue orgulhoso dos patrícios, quer o humilde e obscuro do escravo, todos somos um em Cristo, servindo na mesma milícia o mesmo estandarte. Seja igual para todos, portanto, a caridade, respeitando-se em tudo o merecimento e virtude de cada um”.(24) Aos que entrarem no seu Instituto exige “que possuam em comum todas as coisas”, (25) não contrariadamente ou por força, mas espontaneamente, por amor. Todo religioso deve prender-se, por voto de estabilidade, ao claustro do seu mosteiro. Poderá, desse modo, consagrar-se, com mais eficácia, à oração, ao estudo dos livros; (26) ao cultivo dos campos,(27) às artes manuais, (28) e aos trabalhos de apostolado religioso. Com efeito, “sendo a ociosidade inimiga da alma, convém que o religioso se ocupe, a horas determinadas, no trabalho manual…”.(29) Todavia, o que acima de tudo havemos de colocar, sobre o que se deve zelar com todo o cuidado e diligência, “é que nada se prega ao ofício divino”.(30) E embora “tenhamos de fé que está Deus presente em todos os lugares, devemos crer com mais firmeza esta verdade no ofício divino. Considerando, pois, as maneiras que devemos guardar na presença da Divindade e dos anjos, salmodiemos de modo que a nossa voz e a nossa alma vibrem a uníssono”. (31)

17. Desses princípios e regras que tivemos por bem salientar da Regra beneditina, facilmente se conclui e avalia a sabedoria, a oportunidade, a admirável congruência desta Regra com a natureza humana, a sua importância e gravidade. Com efeito, enquanto nessa escura e convulsionada época da história o cultivo da terra, o amor do trabalho e da arte, o estudo das ciências e das letras, tanto religiosas como profanas, eram lançados, por uma espécie de desdém geral e sintomático, ao abandono, dos mosteiros beneditinos sai uma plêiade luminosa de agricultores, de artistas, de sábios, que nos salvaram incólumes os monumentos da velha literatura, conciliaram os velhos e os novos povos, em guerras constantes, reduzindo-os da barbárie renascente, das correrias, do saque, à moderação da moral humana e cristã, à abnegação do trabalho, à luz da verdade; reconstituíram, enfim, uma civilização enformada nos princípios do Evangelho.

18. Isso, porém, não é tudo. A base, a diretriz, por assim dizer, suprema de toda a vida beneditina, é que todo trabalho, seja ele qual for, intelectual ou manual, seja, antes de mais, para o monge veículo que o eleve a Jesus Cristo e centelha que o inflame no seu amor perfeitíssimo. Não podem, com efeito, as coisas da terra, nem do universo, satisfazer as exigências espirituais do homem, que Deus criou para si. Possuem apenas a propriedade, que o mesmo Deus lhes infundiu ao criá-las, de nos elevarem até ele pela escala ascendente das existências. Por essa razão, é absolutamente necessário “que nada se anteponha ao amor de Cristo”,(32) “que nada nos seja mais caro que o seu amor”,(33) que, numa palavra, “nada absolutamente se anteponha ao amor de Cristo, que se digne conduzir-nos à posse da vida eterna”.(34

19. A este ardentíssimo amor de Jesus Cristo é necessário que corresponda o amor do próximo, porque a todos, indistintamente, devemos o ósculo fraterno da paz e o tributo solícito do nosso arrimo. Donde, enquanto a intriga e o ódio convulsionavam e lançavam os povos nos campos de batalha e, nessa confusão cósmica dos homens e das coisas, erguiam ao alto o facho sangrento da morte, do roubo, da miséria e das lágrimas, Bento legava a seus filhos este preceito santíssimo: “no recebimento dos pobres e viajantes estrangeiros, ponha-se particular cuidado e solicitude, porque é na pessoa destes que principalmente se recebe a Cristo”.(35) E “todos os hóspedes que se apresentarem no mosteiro se recebam como se fossem Cristo, porque ele há de dizer: fui hóspede e recebeste-me”.(36) E mais ainda: “antes de tudo, haja o maior cuidado no tratamento dos doentes, sirvam-se com tal diligência como se fossem realmente Cristo, porque ele disse: estive doente e me viestes visitar”.(37) Tendo rematado, assim, a sua obra, na mais perfeita caridade de Deus e dos homens, e antevendo já com alegria e coroado de méritos a ventura suprema do Paraíso, “ordenou, seis dias antes de morrer, que lhe cavassem a sepultura. E sendo logo tomado de febre, começou a esgotar-se grandemente com o ardor do mal. Crescendo o cansaço, dia a dia, fez-se, no terceiro, conduzir pelos discípulos ao oratório e, armando-se aí da comunhão do corpo e sangue do Senhor, rendeu de pé, sustentado nos braços dos discípulos, a alma a Deus, entre murmúrios de orações”.(38)

II. BENEMERÊNCIAS DE S. BENTO E DA SUA ORDEM PARA A IGREJA E A CIVILIZAÇÃO

20. Depois de passar o santo Patriarca desta vida, com trânsito feliz, a Ordem, que fundara, enformada e conduzida pelo exemplo sempre vivo de suas virtudes e encorajada pela sua intercessão paternal, longe de decair e esmorecer, expandiu-se, largamente, nos anos subseqüentes.

21. Qual tenha sido a ação poderosamente reconstrutiva dos monges, na idade média, quais os serviços por eles prestados nos séculos seguintes, todo historiador imparcial, que explore serenamente os fatos, o há de reconhecer. Efetivamente, os beneditinos, além de terem sido como salientamos já – quase os únicos que nessa época tenebrosa, ignorante e dissolvente, se deram ao trabalho de nos conservarem intactos os amarelecidos códices da literatura antiga, transcrevendo-os e comentando-os pacientemente, foram também eles, sobretudo, que pelo exercício das artes, das ciências e do magistério proporcionaram à cultura e ao ensino impulso notável. Assim como se pode dizer que a Igreja católica deve o brilhante desenvolvimento e firmeza dos seus três primeiros séculos ao sagrado sangue dos mártires e que foi devido à ciência e energia dos santos padres, que, no seguinte, conservou intacta do contágio demolidor das heresias a pureza imaculada de seus dogmas, podemos igualmente afirmar que, ao desmoronar-se o império romano e surgirem as invasões dos bárbaros, foi providencial a aparição da ordem beneditina e de seus florentíssimos mosteiros, destinados a indenizar a Igreja das perdas sofridas, pacificando pela pregação do evangelho os novos povos, harmonizando-os fraternalmente entre si num esforço reconstrutivo, enformando-os, enfim, daquele conjunto de virtudes que derivam dos preceitos do Salvador. À marcha das legiões romanas, que rolavam pelas vias consulares a fim de subjugarem ao império de Roma os povos distantes, sucedeu, com efeito, o exército pacífico dos monges, desprovidos de “forças materiais, mas armados do poder que vem de Deus” (2 Cor 10, 4), enviados pelo sumos pontífice a dilatar o reinado de Jesus Cristo até aos confins da terra, não com a espada, o pavor do saque, da carnificina, mas com a cruz e o arado, com o amor e a verdade.

22. Onde quer que chegasse este exército inerme de agricultores, de artistas, de teólogos, de sábios, de pregoeiros do Evangelho, marcava bem fundo o rastro das suas pisadas, em oficinas que se erguiam, alegres de arte e de trabalho, em relhas que se multiplicavam, desabrochando o seio das florestas na promessa verde dos campos, em novos grupos de povos civilizados, arrancados aos costumes da selva pelo exemplo e pregação dos monges. Apóstolos sem-conta calcorrearam, transbordantes de caridade divina, as regiões turbulentas e ignoradas da Europa, regando-as, generosamente, de suor e de sangue, levando às populações pacíficas a luz das verdades e da moral cristã. Podemos realmente dizer que Roma, engrandecida com a extensão de suas conquistas, levando as guerras de seu império à terra e ao mar, “menos deve à braveza dos soldados que a moderação da paz cristã”.(39) Com efeito, desde a Inglaterra, a França, a Holanda, a Alemanha, a Dinamarca, a Frísia, a Escandinávia, até a Hungria, nenhum povo há que se não orgulhe do apostolado dos monges, os não considere como glória nacional e ilustres iniciadores da sua cultura. Quantos bispos, saídos do claustro, não governaram sabiamente suas dioceses, ou já constituídas ou por eles criadas, fecundando-as com o seu labor! Quantos mestres, quantos doutores exímios, fundando escolas que ficaram célebres depois, iluminando os espíritos obscurecidos no erro e contribuindo para desenvolvimento e progresso da cultura religiosa e profana! Quantos varões santíssimos, finalmente, que, ingressando na ordem beneditina, se adestraram no exercício da perfeição evangélica e intensamente propagaram o reino de Jesus Cristo, com o exemplo e com admiráveis prodígios que operavam mediante a graça divina.

23. Muitos deles, como perfeitamente sabeis, veneráveis irmãos, ascenderam às honras do episcopado ou se imortalizaram com a tiara dos pontífices. Recordar aqui o nome de tantos apóstolos, bispos, santos e pontífices que a Igreja tem inscritos a letras de ouro em seus anais, seria excessivamente longo e, aliás, inútil, porque a vívida luz que os nimba, a incomparável importância que tiveram na história, bastam por si a patenteá-los. 

III. ENSINAMENTOS “DA REGRA BENEDITINA” PARA O MUNDO CONTEMPORÂNEO

24. Julgamos, pois, particularmente oportuno que todos, nesta ocorrência centenária, recordem e refletidamente considerem o objeto desta nossa carta, a fim de mais facilmente se prepararem para celebrar e exaltar estes gloriosos fastos da Igreja e abraçar, também, de vontade generosa e eficaz, os ensinamentos que eles encerram. 

25. Porque, nem só os velhos tempos tiveram motivos de esperar do santo patriarca e da sua ordem os inumeráveis benefícios da sua ação. Os contemporâneos têm a aprender dele muitas e importantes lições. Em primeiro lugar, os seus próprios filhos, numerosíssimos, aprendam a caminhar corajosamente – o que de resto não duvidamos – na trilha luminosa de seus passos e a assimilar, na prática da vida cotidiana, os princípios de santidade e de virtude que lhes legou. Assim, hão de não só corresponder, por certo com mais rendimento e vontade, ao chamamento divino que seguiram por uma quase espécie de instinto celeste, quando lhes amanheceu na alma a graça da vocação religiosa, mas também, de consciência serena e com tranqüilidade, poderão trabalhar mais eficazmente para a comum utilidade da família cristã. 

26. Além disso, qualquer classe social, que se debruce, estudiosa e atentamente, sobre a vida e Regra do santo patriarca, não poderá deixar de lhe sentir o poderoso impulso renovador e de espontaneamente reconhecer que o nosso tempo, oprimido com tantas ruínas e ameaçado de tantos perigos, poderá haurir nessa fonte o preservativo necessário. Antes de mais, recorde-se e maduramente se considere que os princípios augustos da religião, as normas da moral e as bases da sociedade estariam mais seguros e mais firmes; e que, debilitados ou subvertidos estes, tudo o que se prende com a ordem, com a paz, com o progresso dos cidadãos e dos povos, se há de ir, quase necessariamente, desmoronando. Já um espírito pagão, mas culto e inteligente, notou esta verdade, tão belamente demonstrada pela história da Ordem Beneditina: “Vós, pontífices – dizia ele – defendeis mais fortemente a cidade com a religião do que com as muralhas”. (40) E ainda: “Se abolirem (a religião e a moral), seguir-se-á a insegurança da vida e a desordem; se vier a extinguir-se a piedade para com os deuses, ignoro se a fé, a sociedade humana e a mais excelente de todas as virtudes, a justiça, poderão ainda subsistir”.(41)

27. Portanto, é absolutamente fundamental prestar culto ao Nume supremo e obedecer, pública e particularmente, às suas leis santíssimas. Sem elas, poder algum humano terá jamais freios para coibir e domar o conflito das paixões públicas. Pertence exclusivamente à religião o privilégio de dar estabilidade e firmeza aos princípios do honesto e do justo. 

28. Mas há ainda mais, que nos adverte e ensina o Patriarca santíssimo, e de que o nosso tempo anda sobremaneira indigente; e vem a ser que, além do culto de adoração e honra que devemos a Deus, o devemos amar com amor de filhos. E como o estado atual deste amor é realmente de miserável decadência e entorpecimento, não admira que os homens, mais preocupados com o que é da terra do que com o que é do céu, desavenham em contendas, donde se originam guerras e ódios implacáveis. De fato, sendo Deus o autor da nossa vida e provindo-nos dele benefícios sem-conta, é dever de todos nós retribuir-lhe com perfeito amor, e consagrar-lhe integralmente tudo o que somos e possuímos. Deste amor divino há de derivar, como de nascente, a caridade fraterna para com todos os homens, independentemente da raça, nacionalidade ou classe, como se realmente fôssemos todos irmãos em Jesus Cristo. De modo que de todos os povos e classes se forme uma única família cristã, que o egoísmo dos interesses individuais não dissolva, mas a mútua conjugação de esforços confirme e solidarize. Se os princípios de que outrora se valeu Bento para reconstituir e morigerar a sociedade caída e conturbada do seu tempo, fossem hoje largamente aplicados, não temos dúvida de que também o nosso século se havia de reerguer do pavoroso naufrágio, indenizar dos danos que sofreu nos homens e nas coisas, curar-se, enfim, dos imensos males de que está prostrado. 

29. Sabeis também, veneráveis irmãos, que o glorioso legislador nos ensina ainda – o que é hoje, afinal, geralmente aceite, mas que nem sempre na prática tem tido a aplicação conveniente – a saber: que o trabalho humano, longe de ser desprovido de dignidade, molesto e odioso, é, pelo contrário, uma fonte de alegria, de felicidade e de nobreza. Uma vida operosa, cheia, como se diz, na lide incessante do campo, da oficina ou do estudo, não deprime o espírito, nobilita-o; não escraviza, dá-nos, pelo contrário, a sensação forte da superioridade, do domínio sobre quanto nos rodeia e em que nos ocupamos. Também Jesus Cristo, adentro das paredes da casa paterna, se dignou trabalhar na oficina de seu pai, santificando, deste modo, com seu divino suor, o esforço do homem. Advirtam, pois, todos os que, para ganhar o pão de cada dia, se entregam a faina rude da oficina ou da fábrica, ao labor da pena ou da cátedra, que é nobilíssima a sua condição, que lhes faculta os cômodos duma vida honrada e contribui para o bem-estar da comunidade civil. Façam-no, todavia, como queria o santo Patriarca Bento, com a mente e o coração elevados para o céu, voluntariamente, amorosamente. Façam-no, ainda quando defendem os seus direitos legítimos, não com pesar do bem alheio, em greves e revoltas, mas com paz, com ordem. Recordem-se da sentença do Senhor: “Comerás o pão no suor do teu rosto” (Gn 3, 19) e pensem que é preceito para todos de expiação e de obediência. 

30. Não esqueçamos nunca, sobretudo, que as coisas materiais e transitórias em que nos ocupamos pelo vigor do nosso espírito ou do nosso braço, devem ser incentivo de adiantarmos, todos os dias, mais um passo na conquista das celestes e permanentes, únicas em que poderemos encontrar a paz verdadeira, a quietação imperturbável, a felicidade eterna. 

IV. RESTAURAÇÃO DO MOSTEIRO DE MONTECASSINO: DÍVIDA DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

31. Tendo o furacão da guerra assolado, como sabeis, veneráveis irmãos, as regiões do Lácio e da Campânia, subiu também ao vértice do sagrado monte de Cassino. E ainda que nada do que estava ao nosso alcance tenhamos omitido para obviar aos irreparáveis estragos infligidos à santíssima religião, à arte e a própria civilização, o grandioso cenóbio, todavia, que tinha chegado até nós, através dos séculos, como farol luminoso vencendo a treva, foi arrasado, totalmente destruído. Ao contemplarmos as cidades, vilas e aldeias circunjacentes, reduzidas a ruínas e destroços, é quase para dizer que o velho Arquicenóbio, berço da ordem beneditina, quis partilhar do luto e da desgraça dos que realmente podia considerar seus filhos; quase nada mais resta de pé a não ser o sagrado hipogeu onde se conservam os restos do santo patriarca. 

32. Onde se erguiam magníficos monumentos de arte, apenas restam hoje paredes em ruínas, montões de escombros e de entulho, que a vegetação selvagem vai amortalhando de verde, ao lado da pequena habitação que se levantou, há pouco, para abrigo dos monges. No entanto, não podemos duvidar de que, completando-se, na presente conjuntura, catorze séculos depois que o santíssimo Patriarca passou à bem-aventurança após haver dado início e remate a tão gloriosa obra, não podemos duvidar de que todos os homens de bem, de ânimo generoso e, sobretudo, os que dispõem de maiores possibilidades pecuniárias, hão de colaborar na restituição do antiquíssimo mosteiro a seu passado esplendor. É uma dívida da sociedade contemporânea à ordem beneditina. Porque, se efetivamente nos podemos gloriar do adiantamento da nossa cultura, se ainda sentimos prazer na leitura dos velhos escritores, devemo-lo – necessário confessá-lo – a Bento e a seus filhos. Estamos, pois, persuadidos de que a nossa esperança e os nossos votos vão ter perfeita correspondência. De modo que se não limite, apenas, esta obra a reconstrução material do mosteiro, mas seja augúrio de mais venturosos tempos para a expansão e progresso sempre renovado da Ordem e da oportuníssima Regra beneditina. 

33. Animados desta suavíssima esperança, a vós, veneráveis irmãos, a todos os que estão comados ao vosso zelo apostólico, à numerosíssima família dos monges que se gloriam de haver por pai e mestre o santo Patriarca, do mais íntimo da alma concedemos a bênção apostólica, penhor de celestiais graças e testemunho da nossa benevolência.

Dado em Roma, junto de São Pedro, na festa de São Bento, no dia 21 de março de 1947, IX ano de nosso pontificado.

Papa Pio XII

Fonte: https://www.vatican.va/content/pius-xii/pt/encyclicals/documents/hf_p-xii_enc_21031947_fulgens-radiatur.html#fnref40

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *