Diálogos

CAPÍTULO XX – O PENSAMENTO ORGULHOSO DE UM MONGE

Um dia, quando o venerável Pai tomava, já à tardinha, a refeição do corpo, um dos seus monges, filho de certo defensor, estava presente, segurando-lhe o candeeiro diante da mesa. Enquanto o homem de Deus comia e ele assistia, fazendo o ofício da candeia, o jovem, tomado pelo espírito de soberba começou a revolver, calado, em sua mente, e a dizer de si para si, estas palavras:

 

“Quem é este a quem eu assisto enquanto come, seguro o candeeiro e presto serviço? Quem sou seu para que lhe deva servir?”

 

Voltando-se no mesmo instante, o homem de Deus entrou a repreendê-lo com veemência, dizendo:

 

“Persigna o teu coração, irmão; que dizes? Persigna o teu coração!”

 

E, tendo chamado sem mais demora os outros irmãos, ordenou-lhes que lhe tomassem o candeeiro das mãos, e a ele, que deixasse o serviço e fosse na mesma hora sentar-se sossegado. Perguntaram-lhe, então, os irmãos o que tivera no coração, e ele por ordem contou de quão grande espírito de soberba se enchera, e as palavras que em pensamento dizia, calado, contra o homem de Deus.

 

Tornou-se assim bem manifesto a todos que nada podia ficar oculto ao venerável Bento, em cujos ouvidos haviam ressoado até as palavras de um pensamento mudo.

CAPÍTULO XXI – A FARINHA QUE APARECEU EM ÉPOCA DE FOME

Em outra ocasião, a fome devastava toda a região da Campanha, e grande escassez de gêneros angustiava a todos. Já faltava trigo no mosteiro de Bento: quase todos os pães haviam sido consumidos, de modo que não se achavam mais de cinco para os irmãos à hora de comer. Vendo-os contristados, o venerável Pai procurou corrigir com repreensão moderada a sua pusilanimidade, e reanimá-los com uma promessa:

 

“Porque”, dizia, “se entristece o vosso espírito pela falta de pão? Hoje, na verdade, há muito pouco, mas amanhã tê-lo-eis em abundância.”

 

De fato, no dia seguinte, encontraram duzentos módios de farinha em sacos diante da porta do mosteiro, sem que alguém até hoje saiba por quem Deus todo-poderoso os mandou levar. Vendo isto, os irmãos deram graças ao Senhor, e aprenderam a não duvidar da abundância, mesmo em tempo de carência.

 

PEDRO: Peço-te que me digas se devemos crer que o espírito de profecia estava sempre neste servo de Deus, ou se lhe enchia a mente apenas de tempos em tempos.

 

GREGÓRIO: Nem sempre, Pedro, o espírito de profecia ilumina a mente dos profetas, pois, como está escrito do Espírito Santo que

 

“sopra onde quer”, (Jo. 3, 8)

 

também se deve entender que sopra quando quer. Vem daí que Natã, interrogado pelo rei se podia construir o templo, primeiro consentiu e depois proibiu (2 Reis 7). Pela mesma razão, Eliseu, ao ver a mulher chorando, sem saber a causa da sua dor, disse ao servo que a queria repelir:

 

“Deixa-a, porque a sua alma está amargurada, e o Senhor mo encobriu e não manifestou” (IV Reis 4,27)

 

É por disposição de grande bondade que Deus onipotente assim ordena as coisas; pois, ora dando, ora retirando o espírito de profecia, de um lado eleva às alturas a mente dos profetas, e, de outro lado, a conserva na humildade, para que os mesmos, quando recebem esse espírito, saibam o que são por mercê de Deus, e, quando não o têm, conheçam o que são por si mesmos.

 

PEDRO: Eis que forte argumento clama que as coisas são como dizes. Peço-te, porém, que continues a expor tudo que te acode à memória sobre o venerável Pai Bento.

CAPÍTULO XXII – O PLANO DO MOSTEIRO DE TERRACINA TRAÇADO POR BENTO EM UMA VISÃO

GREGÓRIO: Outra vez, um homem religioso pediu a Bento que mandasse alguns discípulos a uma propriedade que tinha perto de Terracina, para construir um mosteiro. Anuindo aos rogos, Bento escolheu alguns irmãos, instituiu-lhes o abade e o que devia ser o seu prior. À despedida, prometeu-lhes o seguinte:

 

“Ide, em tal dia irei também eu, e mostrar-vos-ei em que lugar havereis de edificar o oratório, o refeitório dos irmãos, os aposentos dos hóspedes e tudo que for preciso”.

 

Recebida a bênção, puseram-se logo a caminho; nos dias seguintes, à espera ansiosa do dia marcado, prepararam tudo que parecia necessário para receber os que podiam chegar com o grande Pai.

 

Eis, porém, que na noite em que começava a raiar o dia prometido, o homem de Deus apareceu em sonhos ao monge que ele constituíra abade, e ao prior deste, e lhes foi designando minuciosamente cada um dos lugares onde deviam edificar alguma coisa. Quando despertaram do sono, contaram um ao outro o que tinham visto; mas, por não darem pleno crédito à visão, aguardaram o homem de Deus na prometida visita. Este, porém, não chegou no dia determinado, pelo que foram ter com ele, muito magoados, e lhe disseram:

 

“Esperamos, Pai, que fosses como prometeras, e nos mostrasses onde devíamos edificar; mas não foste”.

 

Ao que lhes disse:

 

“Por que, irmãos, por que falais assim?

Acaso não fui, conforme prometi?”

 

E quando lhe retorquiram:

 

“Quando foste?”,

 

respondeu:

 

“Não vos apareci a um e outro quando dormíeis, e não vos mostrei então cada local do mosteiro? Ide, e, como ouvistes na visão, construí todas as dependências do mosteiro”.

 

Ao ouvirem estas palavras, ficaram profundamente admirados, e voltaram ao referido terreno, onde construíram todos os compartimentos do mosteiro como lhes fora revelado.

 

PEDRO: Gostaria de saber de que modo pode Bento ausentar-se para longe e dar aos irmãos que dormiam, instruções que eles em sonho ouviram e compreenderam.

 

GREGÓRIO: Pedro, porque é que perscrutas o modo como se deram os fatos, e te pões a duvidar dos mesmos? É coisa evidente que o espírito é de natureza mais ágil que o corpo. Ora, sabemos com certeza, pelo testemunho da Escritura, que o profeta, levantado aos ares na Judéia, foi de repente baixado na Caldéia com o seu almoço, que serviu a alimentar outro profeta, e no mesmo instante voltou à Judéia (Dan. 14). Se, pois, Habacuc pôde num momento ir corporalmente tão longe e entregar um almoço, que é de admirar se o Pai Bento obteve afastar-se em espírito e anunciar aos irmãos adormecidos o necessário, de modo que, assim como o profeta se locomoveu corporalmente para alimentar o corpo, assim Bento se transportou em espírito para instituir a vida espiritual?

 

PEDRO: A força da tua palavra, confesso, dissipou em mim as dúvidas do espírito. Agora queria saber que efeito tinham as palavras desse homem no trato da vida quotidiana.

CAPÍTULO XXIII – AS MONJAS MORTAS RESTITUÍDAS À COMUNHÃO DA IGREJA

GREGÓRIO: Dificilmente, Pedro, era a sua palavra, mesmo no trato quotidiano, desprovida de eficácia; pois, tendo alçado aos céus o coração, não lhe podiam as palavras baixar vazias dos lábios. Se, pois, alguma vez dizia algo, não já decidindo, mas somente ameaçando, sua palavra tinha tanta eficácia como se não a tivesse dito apenas duvidosa e condicionalmente, mas já em sentença irrevogável.

 

Assim é que, não longe do mosteiro de Bento, viviam num sítio próprio duas monjas, senhoras de nobre linhagem a quem certo homem religioso prestava serviço nas necessidades da vida exterior. Em alguns, porém, a nobreza da raça produz a vileza do espírito, de modo que essas pessoas, recordando que foram um pouco mais do que outras, são menos dispostas a desprezar-se neste mundo; assim eram as duas monjas, as quais não tinham reprimido perfeitamente a língua sob o freio do hábito, e freqüentemente provocavam à ira, com palavras imprudentes, o homem que lhes prestava serviço nas indigências exteriores. Este, depois de tolerar por muito tempo tais coisas, dirigiu-se finalmente ao homem de Deus e contou-lhe quantas afrontas sofria. Bento, tendo ouvido como procediam as monjas, logo mandou dizer-lhes:

 

“Corrigi vossas línguas porque, se não vos emendardes, eu vos excomungarei”.

 

Por conseguinte, não proferiu a sentença de excomunhão, mas apenas ameaçou.

 

As monjas, porém, sem nada mudar dos antigos costumes, morreram dentro de poucos dias e foram sepultadas na igreja. Ora, quando ali se celebrava a solenidade da Missa, e o diácono clamava como de costume:

 

“Se há alguém excomungado, retire-se do lugar”,

 

a ama que as criara e costumava oferecer ao Senhor a oblação por elas, via-as erguerem-se da sepultura e saírem da igreja. Havendo observado muitas vezes que à voz do diácono elas saiam e não podiam ficar no templo, lembrou-se do que o homem de Deus lhes mandara dizer quando ainda viviam, isto é, que as privaria da comunhão eclesiástica, se não emendassem os costumes e palavras.

 

Com grande dor, então, foi referido o caso ao servo de Deus, que na mesma hora deu com sua própria mão uma oblação, dizendo:

 

“Ide, e fazei que esta oferenda seja apresentada ao Senhor em favor delas, e a seguir já não estarão excomungadas”.

 

De fato, a oferta foi imolada em sufrágio das duas defuntas, e, quando o diácono clamou, segundo o costume, que saíssem os excomungados, não foram mais vistas sair da igreja.

 

Com isto ficou indubitavelmente claro que as ditas monjas, não mais saindo com aqueles que estavam privados da comunhão eclesiástica, a tinham recuperado do Senhor por intermédio do seu servo.

 

PEDRO: É muito para admirar que esse homem, embora venerável e muito santo, mas ainda vivendo nesta carne corruptível, tenha podido libertar almas já colocadas diante do invisível juízo.

 

GREGÓRIO: Acaso, Pedro, não estava ainda nesta carne aquele que ouviu:

 

“Tudo que ligares sobre a terra, será ligado no céu,

e tudo que desligares sobre a terra, será desligado no céu”? (Mt. 16, 19)

 

O poder dos Apóstolos de ligar e desligar, obtêm-no hoje aqueles que, cheios de fé e santos costumes, ocupam um posto de governo sagrado. Contudo, para que o homem, feito do pó da terra, goze de tamanho poder, veio do céu à terra o Criador do céu e da terra; e, para que a carne julgue também os espíritos, Deus feito carne pelos homens deu-lhe o respectivo poder em sua liberalidade, pois a nossa fraqueza se elevou acima de si própria pelo fato mesmo de se ter enfraquecido sob si mesma a força de Deus.

 

PEDRO: Em verdade, com o poder dos milagres concorda a eficácia das palavras do santo.

CAPÍTULO XXIV. O MONGE SEPULTADO QUE A TERRA REJEITOU

GREGÓRIO: Certa vez um jovem monge, que amava os pais mais do que devia, tendo saído do mosteiro sem bênção, para ir à casa dos pais, morreu no mesmo dia em que aí chegou. Sepultado, seu corpo, no dia seguinte apareceu fora da sepultura. Trataram de enterrá-lo novamente, mas no dia seguinte encontraram o corpo mais uma vez de fora, insepulto como na véspera. Correndo, então, sem demora, aos pés do Pai Bento, pediram com muitas lágrimas que se dignasse de conceder ao filho a sua graça. O homem de Deus deu-lhes imediatamente com a própria mão a comunhão do corpo do Senhor, dizendo:

 

“Ide, com grande reverência pondo-lhe sobre o peito este corpo do Senhor, e colocai-o assim na sepultura”.

 

Feito isto, a terra guardou o corpo e não mais o rejeitou. Avalias, Pedro, quanto merecimento tinha esse homem junto ao Senhor Jesus Cristo, para que a própria terra lançasse fora os despojos daquele que não possuía o favor de Bento.

 

PEDRO: Avalio bem, e estou muito admirado.

CAPÍTULO XXV – O MONGE QUE ENCONTROU UM DRAGÃO NO CAMINHO

GREGÓRIO: Um dos monges de Bento se rendera à inconstância, e não queria mais ficar no mosteiro. Apesar de assiduamente repreendido e admoestado pelo homem de Deus, de modo nenhum consentia em permanecer na comunidade, e ainda insistia com importunas súplicas para que fosse despedido. Certo dia, então, o venerável Pai, já entediado pela importunação, ordenou-lhe irado que se fosse embora. Logo que saiu, porém, o monge encontrou na estrada um dragão à sua espreita, de güela aberta. Como o monstro o quisesse devorar, começou a gritar, todo trêmulo e alvoroçado:

 

“Socorro! Socorro! Pois este dragão me quer devorar”.

 

Acorreram os irmãos, os quais não viram dragão algum, mas reconduziram ao mosteiro o monge todo trêmulo e agitado. Este logo prometeu nunca mais abandonar o mosteiro, e desde essa hora permaneceu fiel à promessa, porquanto pelas orações do santo varão pudera ver diante de si o dragão que ele antes seguia sem ver.

 

CAPÍTULO XXVI – O MOÇO CURADO DA LEPRA

Também não quero passar em silêncio o que ouvi do ilustre varão Antônio. Este contava que um servo de seu pai fora atacado de lepra, a ponto de já se lhe entumecer a pele, caírem os pêlos, e não poder ele esconder o pus cada vez mais abundante. Mandado ao homem de Deus pelo pai de Antônio, o enfermo foi com presteza restituído à saúde anterior.

CAPÍTULO XXVII – O DINHEIRO ENTREGUE POR MILAGRE AO DEVEDOR

Tampouco calarei aquilo que o discípulo de Bento chamado Peregrino costumava narrar.

 

Uma vez, certo homem fiel, impelido pelo aperto de uma dívida, acreditou ser seu único remédio ir ter com o homem de Deus e expor-lhe a urgente necessidade. Foi, pois, ao mosteiro, onde encontrou o servo de Deus onipotente, e contou-lhe a grave aflição que sofria por parte de um credor a quem devia doze soldos. Respondeu-lhe o venerável Pai que não possuía os doze soldos, mas, para não deixar de consolar com uma branda palavra a pobreza do homem, acrescentou:

 

“Vai, e volta daqui a dois dias, pois hoje não tenho o que te deveria dar”.

 

Nesses dois dias, conforme o seu costume, ficou entregue à oração. Quando no terceiro dia voltou o devedor aflito, apareceram de repente treze soldos sobre uma arca do mosteiro, que estava cheia de trigo. O homem de Deus mandou apanhá-los e entregá-los ao pedinte angustiado, dizendo-lhe que pagasse doze e guardasse um para os próprios gastos.

 

Eis que agora volto a contar o que ouvi dos discípulos referidos no início deste livro.

 

Certo homem vivia sofrendo da gravíssima inveja de um inimigo, cujo ódio o impeliu mesmo a pôr veneno ocultamente na bebida daquele. Não pôde o veneno tirar a vida, mas a pele do homem perseguido mudou de cor, espalhando-se pelo corpo umas manchas que pareciam de lepra. O doente, porém, levado à presença do homem de Deus, depressa recuperou a saúde, pois, logo que este o tocou, lhe afugentou as manchas da pele.

CAPÍTULO XXVIII – A GARRAFA QUE NÃO SE QUEBROU

Na ocasião em que a falta de alimentos afligia tão gravemente a Campanha, o homem de Deus distribuíra tudo que havia no mosteiro, a diversos indigentes, a ponto de quase nada mais restar na despensa, fora um pouco de azeite numa garrafa de vidro. Apareceu, então, certo subdiácono de nome Agapito, pedindo com muita instância que lhe dessem um pouco de azeite. O homem de Deus, que tinha resolvido dar tudo na terra para que tudo lhe fosse guardado no céu, mandou que entregassem ao subdiácono o pouco de azeite que restava. Todavia, o monge encarregado da despensa, apesar de ter ouvido a ordem, retardou-lhe a execução. Um pouco mais tarde, perguntando-lhe Bento se fora dado o que mandara, respondeu que não, porque, se o fizesse, nada sobraria para os irmãos. Indignado com isto, Bento ordenou a outros que atirassem pela janela a garrafa com o resto de azeite, para que nada ficasse no mosteiro por desobediência. Assim foi feito. Ora, sob a janela abria-se um grande precipício eriçado de pontas de rochedo. A garrafa arremessada foi dar naturalmente nas pedras, mas ficou incólume como se não tivesse sido jogada, de modo que nem ela se quebrou nem o óleo se derramou. À vista disto, o homem de Deus mandou que a buscassem e entregassem, íntegra como estava, ao subdiácono. Reunidos depois os irmãos, repreendeu em presença de todos o monge desobediente pela sua falta de fé e soberba.

CAPÍTULO XXIX – O TONEL QUE APARECEU CHEIO DE AZEITE

Depois desta repreensão, Bento entregou-se à oração com os irmãos. No recinto em que rezavam, havia um tonel de óleo, vazio e tapado. Ora, enquanto o santo homem persistia em oração, a tampa do tonel começou a erguer-se com o azeite que dentro crescia. Deslocada e suspensa a tampa, o azeite que subia, passou as bordas do tonel e acabou alagando o pavimento do lugar em que se achava. Ao notar isto, o servo de Deus Bento logo terminou a oração, e o azeite cessou de escorrer pelo chão. Então, mais uma vez admoestou o irmão pusilânime e desobediente a ter confiança e humildade. O monge, argüido, corou de vergonha, porquanto o venerável Pai acabava de comprovar com um milagre o mesmo poder de Deus onipotente que em sua admoestação lhe recordara. A partir de então, não havia mais quem pudesse duvidar de suas promessas, já que no mesmo instante tinha restituído, por uma garrafa quase vazia, um tonel cheio de azeite.

Continua…