Eis aí o Pai Bento, de quem te falei.” (São Gregório Magno)
PREFÁCIO DE SÃO GREGÓRIO MAGNO AOS QUATRO LIVROS DOS DIÁLOGOS
Abatido, um dia, por causa da excessiva afluência de alguns seculares – aos quais, em suas dificuldades, somos muitas vezes obrigados a pagar até o que sem dúvida não devemos -, procurei um lugar retirado, amigo de minhas mágoas, onde pudesse ver com clareza tudo que me desagradava em minhas ocupações e ter livremente sob os olhos tudo quanto me costumava afligir. Enquanto ali me achava, amargurado e em silêncio por muito tempo, esteve comigo meu amado filho, o diácono Pedro, que desde a mais tenra idade me é familiarmente ligado por grande amizade, e também companheiro no estudo da Palavra Sagrada. Vendo-me o coração devorado de mágoa, disse-me: “Terá acontecido algo de novo, pois estás mais triste que de costume?”
Pedro, respondi-lhe, a tristeza que sofro cada dia, é para mim sempre velha, porque contínua, e, simultaneamente, sempre nova, porque sempre aumenta. Meu pobre espírito, atacado do mal das suas ocupações, recorda o que foi outrora no mosteiro, como as coisas instáveis lhe estavam por baixo, e quanto ele transcendia tudo que passa, acostumado que era a não pensar senão nas coisas celestes; recorda que, embora retido no corpo, já ultrapassava pela contemplação os limites da carne; e a morte, que para quase todos é punição, ele já a desejava como a entrada na vida e o prêmio dos seus trabalhos. Agora, porém, sofre com as dificuldades dos seculares, por ocasião da cura pastoral. Depois de tanta formosura do tempo da sua paz, está hoje enfeiado do pó da atividade terrena. E como, por condescendência com muitos, ele se dissipa pelas coisas de fora, mesmo quando retoma o curso da vida interior, é, sem dúvida, debilitado que a ela volta. Estou, pois, avaliando o que sofro, avaliando o que perdi; e, enquanto considero o que perdi, pesa-me ainda mais o que suporto.
Eis, com efeito, sou agora batido pelas vagas de alto mar, e os ventos de forte tempestade despedaçam a nau de minha mente; quando me lembro da vida anterior, suspiro como se estivesse vendo atrás de mim o litoral. E, o que é ainda mais triste, enquanto sou levado no tumulto de imensas ondas, mal posso ver o porto que deixei; pois esta é a lei das quedas do espírito: primeiro, ele perde o bem que possui, mas ao menos se lembra de o ter perdido; depois, quando avança mais longe, acaba esquecendo o próprio bem que perdeu, e, finalmente, não vê mais, nem de memória, o que antes possuía por experiência. Daí se segue o que antes eu disse: se navegarmos mais adiante, já nem o porto de tranquilidade que deixamos, podemos ver.
Às vezes, também, para aumento de minha dor, volta-me à lembrança a vida de alguns homens que de toda a mente deixaram este século. Vendo as alturas a que chegaram, fico sabendo quanto me encontro por baixo. A maioria deles agradou ao Criador numa vida retirada; para que o seu espírito novo não envelhecesse por ocupações humanas, Deus onipotente não quis que se ocupassem com trabalho deste mundo.
Mas poderei relatar melhor o diálogo (travado entre mim e Pedro), se distinguir perguntas e respostas pela indicação dos nomes dos interlocutores.
PEDRO: Não sabia que na Itália alguns homens brilharam notavelmente pelas virtudes de sua vida. Ignoro, pois, quem são estes cuja comparação te inflama. Não duvido, é verdade de que houve neste país homens bons, mas penso que ou não operaram absolutamente sinais e milagres, ou, se os operaram, foram até hoje de tal modo passados em silêncio que não sabemos que os praticaram.
GREGÓRIO: Pedro, se eu referir o que desses homens perfeitos e aprovados eu só, pobre homenzinho, vim a saber do testemunho de gente boa e fidedigna, ou aprendi por mim mesmo, penso que o dia acabará antes da narrativa.
PEDRO: Gostaria de que em resposta a perguntas minhas contasses alguma coisa desses homens. Não deve parecer condenável interromper com isto a exposição da Escritura, porque não menos edificação provém da lembrança dos milagres. Na exposição da Escritura conhece-se o modo de encontrar e conservar a virtude; na narração dos milagres, conhecemos como se manifesta a virtude encontrada e conservada. E há muita gente que mais pelo exemplo do que pela palavra se inflama de amor pela pátria celeste. Muitas vezes mesmo os exemplos dos Pais trazem à alma do ouvinte uma dupla ajuda, pois, se, de um lado, ele se afervora no amor da vida futura pela comparação com os que o precederam, de outro lado, também se humilha, se julga ser alguma coisa, ao conhecer que outros foram melhores.
GREGÓRIO: O que fiquei sabendo pela narração ouvida de homens veneráveis, também eu o narrarei sem hesitação, seguindo um exemplo de santa autoridade; pois me é mais claro do que a luz que Marcos e Lucas aprenderam, não por ver, mas por ouvir, o Evangelho que escreveram. Todavia, para tirar aos leitores qualquer ocasião de dúvida, referirei em cada caso que descrever, os autores por quem fui informado. Quero, porém, chamar a tua atenção para o seguinte: em alguns casos guardarei apenas o sentido, enquanto, em outros, tanto o sentido como as palavras dos relatores. A razão é que, se de todas as pessoas eu quisesse conservar textualmente as palavras, a linguagem de escritor não poderia reproduzir dignamente as que foram proferidas em linguagem rústica.
Foi de anciãos muito veneráveis que ouvi o que passo a contar.
PRÓLOGO DE SÃO GREGÓRIO MAGNO AO SEGUNDO LIVRO DOS DIÁLOGOS
Houve um varão de vida venerável, Bento tanto pela graça quanto pelo nome, que desde a infância possuía um coração maduro. Superior, pelo seu modo de proceder, ao verdor da idade a nenhuma volúpia entregou seu coração, e assim, enquanto se achava nesta terra, da qual por algum tempo pudera gozar livremente, desprezou, como já murchas, as flores do mundo.
Oriundo de nobre estirpe da província de Núrsia, fora encaminhado a Roma para o estudo das belas letras. Vendo, porém, muitos nesses estudos rolarem pelo despenhadeiro do vício, recolheu logo o pé que quase pusera no limiar do mundo, no temor de que, tocando algo da sua ciência, viesse também ele a despenhar-se por inteiro no tremendo abismo.
Desprezando, pois, tais estudos, deixou a casa e os bens paternos, e, no desejo de agradar somente a Deus, procurou o santo hábito do monaquismo. Retrocedeu, assim, doutamente ignorante e sabiamente insensato.
Não conheço todos os feitos desse varão, mas o pouco que contarei, sei-o pela narração de quatro discípulos seus: Constantino, homem respeitabilíssimo, que lhe sucedeu na direção do mosteiro; Valentiniano, que regeu por muitos anos o mosteiro do Latrão; Simplício, que foi o seu segundo sucessor na direção da comunidade; Honorato, que até hoje dirige o mosteiro onde Bento antes viveu.
CAPÍTULO I – REPARAÇÃO DO CRIVO QUEBRADO
Deixando, pois, as humanidades, resolveu procurar um lugar ermo, seguido apenas pela aia, que o amava com ternura. Chegaram, assim, a certa localidade chamada Enfide, onde, entretidos pela caridade de muitos homens de virtude, ficaram morando junto à igreja de S. Pedro Apóstolo. Um dia, a ama pediu às vizinhas que lhe emprestassem um crivo para limpar o trigo; tendo-o, porém, deixado descuidadamente sobre a mesa, o crivo caiu e se quebrou, ficando partido em dois pedaços. Logo que voltou e o encontrou nesse estado, a mulher começou a chorar muito, aflita por ver quebrada a vasilha que tomara de empréstimo. Quando, porém, o piedoso e bondoso jovem Bento encontrou a ama chorando, compadecido da sua dor, pegou os dois cacos do vaso, e, levando-os consigo, entregou-se à oração com lágrimas. Quando se ergueu da oração, viu junto de si o crivo de tal forma íntegro que nenhum vestígio se podia descobrir da fratura. Então, pronta e carinhosamente consolou a ama, devolvendo-lhe são o vaso que levara em cacos.
Este fato passou ao conhecimento de todos os habitantes do lugar, e foi tido em tanta admiração que penduraram à porta da igreja o crivo restaurado, a fim de que os contemporâneos e os pósteros todos ficassem sabendo em que grau de perfeição o jovem Bento principiara a graça da vida monástica. A vasilha ficou por muitos anos exposta aos olhares de todos, pendendo à parta da igreja até estes tempos dos Lombardos.
Bento, porém, mais apetecendo os maus tratos que os louvores do mundo, e preferindo fatigar-se de trabalhos por Deus a ser alçado pelos favores desta vida, fugiu ocultamente da ama e foi dar a um retiro deserto no lugar denominado, distante de Roma cerca de quarenta milhas. Aí brota uma água fresca e transparente, que, correndo com abundância, primeiro forma um grande lago, do qual deriva, afinal, um rio.
Quando para ali se encaminhava em fuga, encontrou certo monge de nome Romano, que lhe perguntou aonde ia. Ciente do seu desejo, não só guardou segredo mas ainda lhe prestou ajuda e deu o hábito do monacato, servindo-o no que podia.
Chegado a tal lugar, o homem de Deus recolheu-se à apertadíssima gruta, onde morou três anos ignorado de todos, excetuado o monge Romano. Este último vivia num mosteiro próximo, sob a regra do abade, a cujo olhar piedosamente furtava algumas horas para levar a Bento, em determinados dias, a parte de pão que conseguira subtrair ao próprio consumo. Não havia caminho do mosteiro de Romano à gruta, por causa de alto rochedo que em cima da gruta fazia saliência; mas Romano, do alto dessa pedra, costumava fazer descer o pão pendurado a uma corda comprida a que prendera uma campainha para que o homem de Deus, ao ouvir-lhe o toque, soubesse que era a hora de baixar o alimento, e saísse a tomá-lo.
Um dia, porém, o antigo inimigo, invejando a caridade de um e a refeição do outro, quando viu descer o pão, jogou uma pedra e quebrou a campainha. Romano, não obstante, não desistiu de prestar por meios aptos o seu serviço.
No entanto, Deus todo-poderoso queria, de um lado, descansar Romano do trabalho, e, doutro lado, exibir aos homens, para exemplo, a vida de Bento, a fim de que brilhasse como lâmpada sobre o candelabro, iluminando todos os que estão na casa. Por isto, o Senhor dignou-se de aparecer a certo presbítero que morava longe e acabava de preparar, no dia de Páscoa, a própria refeição; disse-lhe:
“Preparas delícias para o teu próprio gozo,
enquanto o meu servo em tal lugar
é atormentado pela fome.”
O sacerdote levantou-se imediatamente e no próprio dia da solenidade de Páscoa, com os alimentos que para si preparara, saiu na direção indicada, procurando o homem de Deus através dos montes escarpados, pelos vales e fossas do terreno, até que o achou escondido na gruta. Depois de rezarem, assentaram-se bendizendo a Deus todo-poderoso; após suaves colóquios sobre a vida eterna, o recém-vindo disse estas palavras:
“Eia, tomemos alimento, porque hoje é Páscoa”.
Respondeu-lhe o homem de Deus:
“Sei que é Páscoa, pois mereci a graça de te ver”.
Morando longe dos homens, Bento ignorava que a solenidade pascal era naquele dia; mas o venerável presbítero de novo lho asseverou:
“Em verdade hoje é Páscoa,
o dia da Ressurreição do Senhor.
De modo nenhum te fica bem jejuar,
pois aqui fui mandado justamente para que juntos partilhemos as dádivas de Deus todo-poderoso”.
Louvando, pois, o Senhor, tomaram alimento; e, finda a refeição e o colóquio, voltou o padre para a sua igreja.
Por esse mesmo tempo também alguns pastores o encontraram escondido na caverna. Vendo-o entre arbustos, vestido de peles, julgaram a princípio que fosse um animal selvagem; mas, quando ficaram conhecendo o servo de Deus, muitos se converteram da sua mente animal para a graça de uma vida piedosa. Assim o nome de Bento tornou-se conhecido pelos arredores; já desde então Bento começou a ser visitado por muitos que, trazendo-lhe a refeição para o corpo, levavam, em troca, nos corações, o alimento de vida que procedia dos lábios do santo.
CAPÍTULO II – VITÓRIA SOBRE A TENTAÇÃO DA CARNE
Certa vez, quando estava só, apareceu-lhe o tentador: uma dessas avezinhas pretas, conhecidas vulgarmente pelo nome de melro, começou a esvoaçar em torno do seu rosto e a chegar importunamente tão perto que o santo homem, se o quisesse, a poderia apanhar com a mão. Em vez disto, fez o sinal da cruz, e o pássaro afastou-se. Desaparecida, porém, a ave, seguiu-se-lhe grande tentação carnal, qual nunca o santo experimentara. Conhecera outrora certa mulher, que o espírito maligno lhe fazia por essa ocasião voltar aos olhos do espírito, inflamando de tal modo o coração do servo de Deus a lembrança de sua formosura, que seu peito mal podia conter as chamas do amor, e que quase pensava em abandonar o deserto, vencido pela paixão. Mas eis que de repente foi contemplado pela graça celeste, e voltou a si; vendo, então, ao lado de si crescerem densas moitas de urtigas e espinhos, atirou-se, despido, a essas pontas e a essas chamas, onde se revolveu por tanto tempo, que, ao sair, estava ferido por todo o corpo. Assim expulsou do corpo, pelas feridas da carne, a chaga do espírito: convertera em dor a volúpia. Ardendo por fora em justa punição, apagou o que por dentro ilicitamente queimava. Venceu, pois, o pecado, porque transformou a natureza do incêndio. E a partir dessa época, como ele mesmo dizia aos discípulos, foi nele a tal ponto subjugada a tentação da volúpia que nunca mais a sentiu. Muitos, então, começaram a deixar o mundo e a acorrer ao seu magistério: livre que estava do mal da tentação, mereceu tornar-se mestre de virtudes. Por isso é que Moisés determina que os Levitas sirvam a partir dos vinte e cinco anos, e que, depois dos cinquenta, se tornem guardas dos vasos sagrados (Num 8,24-26).
PEDRO: Entendo em parte o sentido do testemunho (bíblico) que aduzes, mas peço que o expliques mais plenamente.
GREGÓRIO: É evidente, Pedro, que na juventude ferve a tentação da carne, mas, depois dos cinquenta anos, arrefece o calor do corpo; quanto aos vasos sagrados, são as mentes dos fiéis. É preciso, pois, que, enquanto estão sujeitos à tentação, os eleitos sejam submissos e sirvam, fatigando-se em obediência e trabalhos. Quando, porém, na idade tranquila da mente, tenha passado o calor da tentação, tornam-se guardas dos vasos, isto é, doutores das almas.
PEDRO: Confesso que a explicação me satisfaz. E, agora que já desvendaste o sentido da passagem trazida em testemunho, peço-te que continues a descrever o que foi começado da vida desse justo.
CAPÍTULO III – O COPO DE VIDRO QUEBRADO COM O SINAL DA CRUZ
GREGÓRIO: Vencida a tentação, o homem de Deus, como terra bem cultivada e expurgada de espinhos, produziu com maior abundância o fruto da seara das virtudes. E, com a divulgação da fama de sua exímia vida monacal, ia-lhe o nome ficando célebre.
Ora, havia a não grande distância um mosteiro cujo abade falecera. Toda a comunidade foi ter então com o venerável Bento, e instantemente pediu-lhe quisesse ficar à sua frente. O santo recusou por muito tempo, predizendo que não poderia harmonizar os seus costumes com os daqueles irmãos. Mas, afinal, vencido pelos rogos, cedeu.
Já porém, que vigiava naquele mosteiro pela observância da vida regular e a ninguém permitia que por ações ilícitas se desviasse, como antes, do caminho monástico, os irmãos que ele aceitara, encheram-se de fúria e puseram-se primeiro a acusar a si mesmos por terem pedido a Bento que os regesse; sua vida tortuosa ia em oposição à reta norma do abade.
Como viam que, sob tal abade, o ilícito já não lhes era permitido, e como lhes doía abandonar os antigos hábitos, achando eles dura a obrigação de meditar coisas novas na sua mente velha, alguns deles – já que aos maus é sempre pesada a vida dos bons – tramaram a morte do abade, e, tomado o alvitre em conselho, deitaram-lhe veneno ao vinho. Quando apresentaram ao Pai, sentado à mesa, o copo da bebida pestífera para ser abençoado segundo o costume da casa, Bento estendeu a mão e fez o sinal da cruz. A este gesto, o vaso, que estava distante, estalou e fez-se em pedaços, como se naquela taça de morte tivesse dado, em vez da cruz, uma pedrada.
Compreendeu logo o homem de Deus que o copo contivera uma bebida mortal, pois não pudera suportar o sinal da vida. Levantou-se no mesmo instante, e, com o rosto plácido, a mente tranquila, convocou os irmãos, aos quais assim falou: “Deus tenha compaixão de vós, irmãos.
“Porque me quisestes fazer isto? Não vos disse eu previamente que não se harmonizariam os vossos e os meus costumes?
Ide, e procurai para vós um Pai consoante à vossa vida; depois disto já não me podereis reter”
Voltou, então, ao recanto da dileta solidão, e só, sob os olhares do Contemplador Superno, pôs-se a viver consigo mesmo.
PEDRO: Não entendo bem o que significa isto: “viver consigo mesmo”.
GREGÓRIO: Se o santo varão pretendesse ter por muito tempo sob seu poder e coação irmãos que conspiravam unanimemente contra ele e eram de vida tão diferente da sua, talvez excedesse o limite das próprias forças, perdesse a tranquilidade, e. assim, baixasse da luz da contemplação, os olhos da mente. Cansando-se em lidar cada dia com a incorreção de outros, cuidaria menos de si próprio, e, desta forma, talvez viesse a perder-se a si, sem achar os outros. Pois, quando somos arrastados muito fora de nós pela agitação do pensamento, continuamos a ser nós mesmos, mas não estamos em nós mesmos, porque deixamos de olhar para dentro de nós e vagamos pelas outras coisas. Acaso diremos que vivia consigo aquele que partiu para longe, consumiu o quinhão recebido e se empregou na casa de um habitante do lugar, deu de comer a porcos, que via fartarem-se de favas, enquanto ele mesmo tinha fome? Depois, porém, começou a pensar nos bens que perdera, e então foi escrito dele:
“Voltando a si, disse:
Quantos mercenários têm pão em abundância na casa de meu pai!” (Lc. 15, 17)
Ora, se estava em si mesmo, como é que voltou a si?
Disse eu, pois, que esse venerável homem viveu só consigo, porque, sempre prudente na guarda de si mesmo, vendo-se continuamente ante os olhos do Criador e examinando-se sem cessar, nunca deixou que lhe divagasse fora o olhar da mente.
PEDRO: Como entender o que está escrito do Apóstolo Pedro, quando foi tirado do cárcere pelo anjo? Ele,
“Voltando a si, disse:
Agora sei, na verdade, que o Senhor enviou o seu anjo e me livrou do poder de Herodes e de toda a expectativa do povo dos Judeus”. (Atos 12, 11)
GREGÓRIO: De dois modos, Pedro, somos levados para fora de nós: ou caímos abaixo de nós mesmos pela queda do pensamento, ou somos transportados acima, pela grafa da contemplação.
Aquele, pois, que guardou porcos, caiu, por pensamentos divagantes e imundos, abaixo de si, enquanto aquele que o anjo libertou e arrebatou no êxtase do espírito, esteve também fora, mas acima, de si. Cada um deles, portanto, “voltou a si”: um, deixando as obras erradas, recolheu-se a própria alma; o outro, descendo das alturas da contemplação, voltou ao modo comum de inteligência, como dantes. Por conseguinte, o venerável Bento, naquela solidão, viveu só consigo, enquanto se manteve dentro da clausura do pensamento; pois todas às vezes que o ardor da contemplação o raptou para as alturas, ele se deixou, sem dúvida, abaixo de si mesmo.
PEDRO: Apraz-me o que dizes; mas queria saber se ele podia deixar os irmãos que tinha tomado a si para sempre.
GREGÓRIO: Em minha opinião, Pedro, julgo que onde existem alguns bons que possam ser ajudados, devem os maus ser suportados com paciência. Mas onde falta, por completo, o fruto dos bons, torna-se, finalmente, inútil o trabalho gasto com os maus, mormente se perto há outras condições capazes de produzir fruto para Deus.
Por causa de quem ficaria ó santo homem ali, pendo todos em peso contra si? Muitas vezes, também, no espírito dos perfeitos se dá uma coisa que não devemos passar em silêncio: vendo sem resultado o seu esforço, passam a outro lugar, onde trabalhem com fruto. Por este motivo, aquele grande pregador, que ardia por
“dissolver-se” e “para quem Cristo constituía o viver, e a morte, lucro”, (Fil. 1, 21-23)
que não só apeteceu os sofrimentos para si, mas ainda inflamou os outros para tolerá-los, esse grande pregador, quando foi alvo de perseguição em Damasco, procurou, para evadir-se, a muralha, cordas e um cesto, e quis ser baixado às ocultas (II Cor. 11, 32-33). Diremos, por ventura, que Paulo temeu a morte, que ele próprio afirma ter cobiçado por amor de Jesus?
A verdade é que, vendo esperá-lo ali menos fruto e maior trabalho, se reservou para trabalhar em outra parte com maior proveito; pois o robusto combatente de Deus não quis ficar encerrado no acampamento, mas buscou o campo de batalha. Donde também em breve verás, se prestares atenção, que o mesmo venerável Bento não deixou de lado tantos rebeldes quantos ressuscitou, alhures, da morte da alma.
PEDRO: É como dizes; mostra-o tanto a razão evidente como o adequado testemunho da Escritura. Peço-te agora que voltes à narração da vida de tão grande Pai.
GREGÓRIO: Como o santo homem, vivendo muito tempo naquela solidão, crescesse em virtude e milagres, foi reunindo muitos no lugar para o serviço de Deus todo-poderoso. Pôde, assim, construir, com a ajuda de Jesus Cristo Senhor onipotente, doze mosteiros, em cada um dos quais colocou doze monges sob um abade instituído; consigo, porém, conservou alguns poucos, que julgou conveniente se formassem ulteriormente em sua presença.
Por esse tempo, também, começaram a afluir de Roma pessoas nobres e piedosas, que lhe davam os filhos a fim de que os criasse para Deus todo-poderoso. Foi então que Equício fez a entrega de Mauro, e o nobre Tertulo, a de Plácido, flores das esperanças paternas. Mauro, adolescente que se distinguia pelos bons costumes, começou a prestar auxílio ao Mestre, enquanto Plácido ainda se achava em idade infantil.
CAPÍTULO IV – O MONGE DIVAGANTE RECONDUZIDO À SALVAÇÃO
Em um dos mosteiros que construíra ao redor, havia certo monge que não conseguia ficar em oração. Logo que os irmãos se inclinavam nesse exercício, saía e punha-se a revolver na mente vadia coisas mundanas e transitórias. Admoestado várias vezes por seu abade, foi por fim conduzido ao homem de Deus, que lhe increpou com veemência a insensatez; de volta, porém, ao seu mosteiro, mal conseguiu observar por dois dias a admoestação do homem de Deus; já ao terceiro, recaindo no velho hábito, entrou de novo a vaguear na hora da oração. Quando isto foi contado ao servo de Deus pelo pai do mosteiro, respondeu aquele:
“Irei eu mesmo, e pessoalmente o emendarei”.
O homem de Deus foi, com efeito, ao dito mosteiro, e na hora marcada, quando os irmãos depois da salmódia se entregavam à oração, observou que o monge que não podia ficar rezando, era arrastado por um negrinho, que o puxava pela orla do hábito. À vista disso, Bento perguntou secretamente ao abade do mosteiro, Pompeiano, e ao servo de Deus, Mauro:
“Não vedes, então, quem é que puxa esse monge?”
Responderam que não. Ao que retorquiu:
“Oremos para que vejais também vós a quem é que esse monge segue”.
Depois de dois dias de oração, Mauro monge o viu, ao passo que Pompeiano, pai do mosteiro, não o conseguiu.
Ora, no dia seguinte, saindo do oratório depois do ofício, o homem de Deus topou com o dito monge em pé do lado de fora, e aí com uma vara bateu-lhe de rijo, por causa da cegueira de seu coração. Desde esse dia o monge nunca mais se deixou induzir pelo pretinho, permanecendo sossegado na prática da oração, e o antigo inimigo não mais se atreveu a dominar-lhe o pensamento, como se fora ele mesmo que levara as pancadas.
CAPÍTULO V – ÁGUA QUE BROTOU DE UMA PEDRA NO ALTO DO MONTE
Dos mosteiros que Bento edificara na mesma região, três ficavam em cima de rochedos da montanha. Era, por isto, muito penoso aos irmãos descer sempre ao lago para buscar água, tanto mais que o declive do monte constituía grave perigo para todos aqueles que, cheios de medo, por ele desciam.
Reuniram-se, então, os irmãos desses três mosteiros, e foram ter com o servo de Deus, Bento, dizendo:
“É-nos penoso ir todos os dias ao lago buscar água, e por isto é necessário mudar de lugar os nossos mosteiros”.
Bento os consolou com brandura e despediu.
Na mesma noite, porém, com o menino Plácido, de que acima falei, subiu ao rochedo do monte, e ali orou por muito tempo. Acabada a oração, colocou no dito lugar três pedras como sinal e, sem que os outros percebessem qualquer coisa, voltou ao seu mosteiro.
No dia seguinte, tendo os irmãos voltado à sua presença para tratar das dificuldades da água, assim lhes falou:
“Ide, e cavai um pouco o rochedo no sítio em que achardes três pedras sobrepostas; Deus Todo-Poderoso é capaz de fazer brotar água até naquele cume de montanha, para poupar-vos o cansaço de tão grande caminhada”.
Ora, indo eles à pedra do monte indicada por Bento, encontraram-na já gotejante. E, quando nela praticaram uma cova, esta logo se encheu de água, que brotou com tanta abundância que ainda hoje corre em quantidade, e serpeja desde o pico até as faldas da serra.
CAPÍTULO VI – O FERRO QUE VOLTOU AO PRÓPRIO CABO
Em outra ocasião, certo godo, pobre de espírito, procurou a vida monástica, e foi recebido com o maior agrado pelo homem de Deus. Um dia, este mandou dar-lhe um instrumento semelhante a uma foice, para remover os espinheiros de certo lugar que devia ser transformado em horta. O lugar que o godo recebeu para limpar, estava situado à margem do lago. Quando roçava com toda a força as densas moitas de espinheiro, eis que o ferro, saltando do cabo, caiu no lago, precisamente onde tanta era a profundidade das águas que não havia esperança de recuperá-lo. Perdida a ferramenta, correu o godo, todo trêmulo para o monge Mauro, a quem narrou o dano que causara, fazendo ainda penitência pela falta.
O monge Mauro tratou logo de referir o fato ao servo de Deus, Bento. Tendo-o ouvido, o homem do Senhor encaminhou-se para o lugar, tomou da mão do godo o cabo e mergulhou-o no lago; na mesma hora o ferro subiu do fundo e entrou no cabo. Bento, então, restituiu a ferramenta ao godo, dizendo:
“Eis, trabalha agora, e não fiques triste.”
CAPÍTULO VII – MAURO CAMINHA SOBRE AS ÁGUAS
Um dia, quando o venerável Bento estava na cela, o jovem Plácido, monge do santo varão, saiu para tirar água do lago. Quando, porém, mergulhou a vasilha que segurava, tão incautamente o fez que ele mesmo, caindo, a acompanhou. A correnteza logo o colheu e levou para o meio do lago, à distância da margem de quase uma flechada.
O homem de Deus, embora na cela, no mesmo instante teve notícia do acidente e chamou Mauro depressa, dizendo:
“Irmão Mauro, corre, pois o menino que foi buscar água, caiu no lago e já está longe, levado pela corrente”.
Coisa admirável e não vista depois do apóstolo Pedro! Tendo pedido e recebido a bênção, Mauro saiu ligeiro movido pela ordem do Pai, e nisto correu sobre as águas, pensando que ia por terra, até o ponto aonde chegara o menino arrastado pela onda; agarrou-o pelos cabelos e voltou também a curso rápido.
Logo que pisou terra, voltando a si, olhou para trás e viu que correra em cima das águas. E, como não podia presumir que isto deveras tivesse acontecido, cheio de admiração temeu o fato. Voltando ao Pai, contou-lhe o sucedido. O venerável Bento começou, então, a atribuir o caso não aos próprios méritos, mas à obediência de Mauro. Este, porém, replicando, dizia que era devido somente ao mandado do Pai, e que não tinha consciência daquele prodígio, que sem saber praticara. Nessa amistosa contenda de humildade sobreveio como árbitro o menino que fora salvo; o qual assim falou:
“Quando eu era arrebatado das águas,
via sobre minha cabeça a melota do abade,
e contemplava-o a tirar-me das águas”.
PEDRO: Muito grandes são as coisas que narras, e proveitosas para a edificação de muitos. De minha parte, quanto mais bebo dos milagres desse santo varão, mais sede tenho.
CAPÍTULO VIII – O PÃO ENVENENADO QUE O CORVO LEVOU PARA LONGE
GREGÓRIO: Já aqueles lugares estavam em grande extensão abrasados do amor de Jesus Cristo, Deus Nosso Senhor, e muitos cristãos tinham abandonado a vida secular para ali domar o orgulho do coração sob o suave jugo do Redentor. Como é costume dos maus invejar aos outros o bem da virtude que eles mesmos não procuram praticar, eis que o padre de uma igreja próxima, chamado Florêncio (avô do nosso subdiácono Florêncio), tocado da maldade do antigo inimigo, começou a ter ciúme do santo homem, e pôs-se a denegrir sua vida de monge e a impedir quantos podia, de irem visitá-lo.
Vendo, afinal, que não conseguia opor-se aos progressos de Bento, vendo que crescia a fama de sua santidade, e que muitos, pelo simples pregão dessa fama, eram continuamente chamados a um estado de vida melhor, FIorêncio, mais e mais abrasado pela inveja, ia-se tornando cada vez pior: os louvores merecidos pela vida de Bento, ele os apetecia; vida tão louvável, porém, não a queria levar.
A tal ponto foi obcecado pelas trevas da inveja, que chegou a enviar de presente ao servo de Deus todo-poderoso um pão envenenado. O homem de Deus o recebeu agradecido, mas não lhe ficou oculta a peste que no pão se ocultava.
Ora, acontecia que à hora da refeição, costumava vir da floresta próxima um corvo, que recebia pão das mãos de Bento. Quando então chegou como de costume, o homem de Deus lançou diante do corvo o pão envenenado do presbítero, e deu-lhe esta ordem:
“Em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo,
toma este pão e atira-o num lugar tal
que não possa ser achado por ninguém”.
O corvo, então, de bico e asas abertos, começou a esvoaçar e a crocitar em redor do pão como se dissesse claramente que queria obedecer, mas não podia. No entanto, o homem de Deus ordenava repetidas vezes:
“Leva, leva sem medo, e vai jogá-lo onde não possa ser encontrado”.
Finalmente, depois de hesitar por muito tempo, o corvo tomou o pão no bico e, levando-o, partiu. Ao cabo de três horas voltou sem o pão, que lançara fora, e recebeu das mãos do homem de Deus a ração costumeira.
Vendo o venerável Pai que o coração daquele sacerdote se inflamava de ódio contra sua vida, mais se condoía dele que de si mesmo.
Ora, o citado Florêncio, já que não lograra matar o corpo do mestre, tomou a peito acabar com as almas dos discípulos.
Por conseguinte, à vista destes introduziu no quintal do mosteiro em que estava Bento, sete moças nuas, que, de mãos dadas, dançaram diante deles por muito tempo, a fim de inflamar-lhes o espírito para as depravações da luxúria. Vendo isto da cela, e temendo a queda dos discípulos mais jovens, o santo homem, que bem se dava conta de ser o único motivo da perseguição, acabou por ceder à inveja: nomeou os superiores, e distribuiu os irmãos pelos mosteiros que edificara; e, levando consigo alguns poucos monges, mudou de domicílio.
Tão logo, porém, o servo de Deus se esquivava humildemente aos ódios de Florêncio, e já Deus onipotente castigava a este de terrível forma. Pois, estando no terraço, donde com prazer contemplava a partida de Bento, o mesmo ruiu, enquanto permanecia ileso o resto da casa, e, esmagando o inimigo de Bento, acabou com ele.
O discípulo do homem de Deus chamado Mauro julgou que devia imediatamente anunciar o fato ao venerável Pai Bento, que apenas caminhara umas dez milhas, e disse-lhe:
“Volta, pois o presbítero que te perseguia, morreu”.
Ao ouvi-lo, prorrompeu Bento em fortes lamentos, tanto pela morte do inimigo como pela alegria que com ela teve o discípulo. Do fato seguiu-se que Bento impôs uma penitência ao discípulo, pois este, ao contar o ocorrido, ousara regozijar-se pelo fim do inimigo.
PEDRO: São admiráveis e estupendas as coisas que dizes. Com efeito, na água que brotou da pedra, vejo Moisés (Num. 20, 11); no ferro que voltou do fundo d’água, Eliseu (IV Reis 6, 7); no caminhar sobre as águas, Pedro (Mt. 14, 29); na obediência do corvo, Elias (3 Reis 17, 6); no luto pela morte do inimigo, Davi (II Reis 1, 11; 18, 13). Como posso avaliar, este varão foi cheio do espírito de todos os justos.
GREGÓRIO: O homem de Deus, ó Pedro, possuiu o espírito do Deus único, que pela graça da Redenção encheu o coração de todos os eleitos, e de quem diz, João:
“Era a verdadeira luz que ilumina todo homem que vem a este mundo”. (Jo. 1, 9)
E ainda:
“Da sua plenitude nós todos recebemos”. (Jo. 1, 16)
De fato, os santos homens de Deus puderam obter do Senhor milagres, mas não os puderam transmitir a outrem. O Senhor, porém, deu os sinais da virtude aos seus súditos, Ele que prometeu dar o sinal de Jonas aos seus inimigos, de modo que se dignou de morrer ante os soberbos e ressuscitar ante os humildes, para que aqueles vissem o que iam desprezar, e estes contemplassem o que com veneração deveriam amar. Deste mistério se seguiu que, enquanto os soberbos só viram o aspecto ignominioso da morte, os humildes receberam a glória de poder contra ela.
PEDRO: Peço-te agora que digas para que lugar se dirigiu o santo homem, e se lá praticou novos milagres.
GREGÓRIO: Saindo o santo homem para outras paragens, mudou de lugar, mas não de inimigo. Pois os combates que depois sustentou, foram tanto mais duros, quando foi desde então o próprio mestre da maldade que teve abertamente contra si.
O lugar fortificado chamado Cassino está situado no flanco de elevada montanha, a qual o abriga dentro de extensa garganta, e depois, alteando-se ainda por três milhas, como que prolonga até as nuvens o seu cume. Aí em cima tinham os antigos um templo onde, segundo o costume dos primitivos gentios, Apolo era venerado por insensata multidão de camponeses. Cresciam por toda a parte em torno bosques consagrados ao culto dos demônios, onde a turba insana dos infiéis ainda naquele tempo oferecia sacrifícios sacrílegos.
Chegado a tal lugar, o homem de Deus despedaçou o ídolo, derrubou a ara, incendiou os bosques e estabeleceu no próprio templo de Apoio a capela de S. Martinho, enquanto no lugar da ara do mesmo Apoio construiu a capela de S. João. Além disto, chamava à fé, por contínuas pregações, a multidão que morava nas redondezas.
Não podendo suportar tudo isso em silêncio, o antigo inimigo oferecia-se aos olhos do Pai, não mais ocultamente ou em sonhos, mas em visão manifesta, e queixava-se, com tais clamores, de sofrer violência, que também os irmãos lhe podiam escutar os gritos, sem, todavia, lhe discernir a figura. Conforme referia o venerável Pai aos discípulos, o antigo inimigo aparecia diante dos seus olhos corporais, hediondo e envolto em chamas; com a boca e os olhos chamejantes parecia investir contra ele.
O que dizia, porém, todos o ouviam. Primeiro, chamava Bento pelo nome. Já que este não respondia, logo disparava em doestos. Assim é que, ao chamá-lo
“Bento, Bento”,
vendo que não obtinha resposta alguma, imediatamente acrescentava:
“Maldito e não Bento,
que tens tu comigo?
Porque me persegues?”
Consideremos agora os novos combates do antigo inimigo contra o servo de Deus, ao qual aquele quis fazer guerra, mas acabou por proporcionar, sem querer, ocasiões de vitória.